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2 Contos: “AULA DE POLARIZAÇÃO e “O mesmo espírito”


A Mulher Casa, Louise Bourgeois

Conto “AULA DE POLARIZAÇÃO

Essa semana corri feito louca pra não discutir com minha vizinha, mas confesso que foi difícil. Na verdade, ficamos em casa, uma acalmando a outra, uma falando pela outra para que ninguém nervoso ou momentaneamente sem paciência fosse ter com ela.

Despistamos, procuramos outros interlocutores, fingimos que não entendemos os “foras” – todos terríveis. Mas fica a pergunta: a polarização tira mesmo as pessoas da realidade da vida ou é apenas uma esperteza?

Ah! Você deve estar achando que estou falando de política. Mas não. Estou falando de você prestar solidariedade a um vizinho e ao pedir o que estava no nosso acordo, receber 2 quentes e 3 fervendo da pessoa presente no momento em que ele estava sendo firmado. Pois é: meu vizinho não está podendo se fazer presente e sua representante resolveu cair matando.

Se vocês pensarem em política, porém, acho que acaba sendo a mesma coisa porque todos os ataques, tudo o que é falado é imaginário. Brasília nisso é impressionante! Portanto, num dado momento, o que tinha a participação da “vizinha representante” começou a virar “não quero falar com você agora” e tinha sempre um milhão de motivos. Ao insistirmos – a coisa pegava fogo. Num instante íamos para “você não vê que não posso, que não tenho nada a ver com isso, não é problema meu” – exatamente o que aconteceu na pandemia, lembram?

Igualzinho a bater na porta do gabinete do político que você votou, ele nunca poder te atender e mandar alguém “te despachar”. Mas, igualzinho à política, fomos buscando alternativas e achamos um interlocutor muito melhor, que nos ouviu e tentou ajudar de verdade. Claro que na política não acontece nada assim, de boa vontade, infelizmente. Mas na minha vida real apareceu e conseguimos continuar ajudando, sem levarmos nenhuma “rasteira”. Resultado: Aqui, como lá em Brasília, tem gente que na hora de pedir faz aquele “olho de por favor”! Depois, na hora de cumprir a sua parte e pensar no povo, só quer saber de seus problemas. Por isso que tem tanto político que inventa mentiras – que agora tem o nome de fake news pra disfarçar e parecer chique, meio gringo – e nos enrolar! Que colocam Deus como o “costas largas” do universo pra abusarem em seguida. E pra todos os excessos, chamam o nome Dele (bastante em vão, aliás). Aí não tomam vacina, discordam da ciência, inventam acusações, dizem que não vão fazer o que deviam fazer e que a culpa disso – claro – é de quem fica apontando a realidade da vida.

Por nossa sorte, conseguimos uma aliada que reconheceu que estávamos ajudando numa emergência e nos acompanhou na resolução de tudo. Mas na política, meu amigo, muitas vezes te dá aquela vontade de chegar na “beirinha da Terra plana” e perguntar: - Quem foi que votou em você, hein? Porque esse sim quero entregar na mão Deus pra Ele olhar bem na cara e não esquecer nunca mais! Oxente!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “O mesmo espírito”

Ana estava cansada, mas o dia tinha sido incrível. Pela manhã deu 4h de aulas na faculdade, sobre sociologia e psicologia no desporto. Ama dar essas aulas. Os alunos são super interessados, desenvolvem boas conversas – construtivas e inteligentes. É uma maravilha. Quando está saindo de carro e ouvindo música, não tem vontade de falar e o corpo começa a ficar pesado, cansado. Como a noite anterior é uma noite de consolidação do que tem preparado, de tensão porque quer dar o máximo de si e quer que aprendam o que não vão aprender noutros lugares, acaba por dormir leve, tensa e pouco. Chegaram a rir dela muitas vezes. “Ficar nervosa e preparar-se tanto para dar umas aulas? Ahahaha” ou “Nunca pensei que um professor se preparava para dar aulas.

Na hora de almoço, fazia sempre uma paragem num espaço com um boteco/pé sujo/tasca a meio da viagem. Amava comer ali. Quando tinha muita fome, pedia uma sopa de lavrador, um panado no pão que vinha com uma folha de alface e um sumol de ananás. Quando tinha menos fome, era o pão com panado e alface e o sumol. Como amava aquela sopa. Parecia que estava em casa. E o panado era frito mas tinha um sabor tão maravilhoso que valia a pena a asneira. E o sumol, o sumol, o sumol. O sabor de tempos de criança, sabor a família, sabor a férias. Perfeito almoço. Saía dali nova e rápido porque tinha de fazer uma viagem de uns 60 km para as aulas de mestrado. Das duas da tarde até à meia-noite, ia ter aulas seguidas, com pausa de uma hora para jantar. As aulas interessantes e inovadoras a deixavam com a mente viajando, pensando em novas possibilidades para o seu trabalho e para a sua vida. Mas as aulas mais monótonas ou que não traziam nada de novo, davam sono e ela obrigava-se a ver ali algum interesse. Paragem para jantar, com os colegas sempre marcando um novo restaurante, com maravilhosos petiscos. Aquela cidade era cheia de comidas deliciosas e todos os restaurantes eram espetaculares. Que cidade, que comida.

As aulas após o jantar eram maravilhosas, repletas de assuntos importantes, interessantes e debates muito construtivos. Nem apetecia terminar. Mas tinha ainda 60 quilómetros para chegar em casa. Preferia evitar a autoestrada para poupar algum dinheiro. Depois de almoço tinha de ir pela autoestrada para chegar a tempo, mas a volta para casa podia ser pela estrada nacional, que não tinha trânsito nenhum. Devagar, ouvindo música, deixando fluir toda a novidade que ouviu nesse dia. Sua mente pipocava possibilidades, descobertas, o futuro.

As amigas e ex-colegas da faculdade começaram a estranhar ela não ir mais aos jantares e noites de bares e discotecas, todas as sextas e sábados. Algumas chegaram mesmo a acusá-la de se achar importante – por dar aulas na faculdade e estar a fazer o mestrado. Teve uma que chegou a divulgar a piada que Ana estava juntando dinheiro para o enxoval secreto. Tinham feito a faculdade juntas, trabalhos e projetos em conjunto, cheias de ideias, cheias de sonhos. Mas, depois da faculdade, parece que travaram. Os sonhos delas viraram jantares, festas e viagens. Ela adorou viver um tempo essa vida – tinha curiosidade e pode satisfazer sua curiosidade. Mas tinha muitos sonhos que se foram construindo quando preparava as aulas da faculdade e quando ouvia os professores do mestrado. Eram mundos enormes que se abriam, eram respostas e provocações às suas interrogações, eram possíveis caminhos que se descobriam. E era algo dentro dela que lhe dizia que era possível. Que existiam milhões de coisas a fazer. Para ela nunca existiu o pensamento de fazer a faculdade para encontrar um trabalho e depois curtir a vida com viagens, restaurantes e festas. Ela se sentia com o mesmo espírito com que foi a pé para a escola a primeira vez, junto de casa dos pais. Com o mesmo espírito com que foi no primeiro dia de trem para estudar na cidade, com 10 anos. Com o mesmo espírito com que foi para outra cidade viver para poder fazer a faculdade. Com o mesmo espírito com que mudou de país. O espírito de encontrar respostas, soluções, formas de resolver os problemas do mundo, de melhorar a vida das pessoas. As pessoas, sempre as pessoas. Precisam da sua contribuição e quer corresponder. Mesmo das pessoas que decidiram dedicar-se a fazer viagens, festas, aguardando que chegue o fim da vida. Mesmo das que deixaram de lhe falar por ela agora “ser importante”. Mesmo daquelas que tentam atrapalhar.

Ana Santos, professora, jornalista

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