Conto “ARAPONGA”
Era fofoqueira e maledicente. Fato. Poderia ver coisas maravilhosas, mas... Poderia conhecer pessoas maravilhosas, mas... Poderia testemunhar progressos, oferecer elogios, mas...
Sempre tinha o “mas”. Pra um tudo. E de tanto olhar desconfiando, de tanto suspeitar que os outros eram como ela – maledicentes – foi ficando paranoica. Chegava em casa e jurava que não tinha visto o que viu ou que sabia de uma treta com aquela pessoa importante – que ela nunca tinha visto na vida.
Colocava uns contra os outros para ter mais poder e por incrível que pareça aquilo lhe rendia seguidores, fãs, apaixonados, stalkers.
Virou uma mania: ia à missa para “averiguar” os vizinhos, com quem estavam, o que falavam, para quem olhavam. Se sorriam, choravam, tossiam, arrotavam – tudo era noticia.
Passou a ameaça-los:
- Eu vi você tirando meleca na festa! Se não livrar meu menino do castigo pelo mau comportamento na escola, todos irão saber como você é porco.
Todos tinham medo de sua forma de agir, mas naquele momento da vida ela era vista como popular e... todos tinham algo a perder. Na verdade, todos sempre têm algo a perder – mas daí a se deixarem corromper...
Um dia foi gravada a combinar como faria para que a vizinha “lhe doasse” uma galinha dentro do esquema “eu sei o que você fez”. A policia veio e dessa vez ela não conseguiu fugir porque todos filmavam tudo para se garantirem, caso no futuro, a “fofoqueira lhes caísse por cima” com seu ódio inominável e sem fim.
Teve ódio de todos, quis se vingar, mas não havia mais tempo hábil para escapar. Ela era apenas uma ladrazinha maledicente que como todas seria presa e pagaria por seus crimes - independente da ameaça, da grosseria, do mal estar que pudesse causar. Ela e seus filhos. Descendo degrau por degrau a escala da credibilidade, como muitos sabiam – era muito conhecida em seu “fazer futrical”, em suas ofensas e ameaças sem fim.
Foi condenada por seus crimes. Inúmeros. Quem a viu disse “bem feito”. Quem viveu, testemunhou. Ela caiu rosnando, gritando e ameaçando morder – perigosamente maledicente – como sempre.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Aquele joelho...”
Ela era uma pessoa inquieta desde menina. Raramente se sentava ou deitava. Também não gostava muito de dormir. Tudo o que existia na vida, que implicasse ter o corpo parado, detestava. Sabia que tinha sorte porque o seu corpo aguentava tudo o que ela se propunha fazer. Era um grande parceiro de vida, sempre pronto a fazer as aventuras e os desafios que ela desejava enfrentar. Estudava em cima das árvores, ia a correr para a escola, nadava para atravessar o rio que existia junto da casa do avô – dizia-lhe sempre que preferia ir a nado porque era mais rápido. Mas era uma maravilha o avô lhe preparar um maravilhoso lanche para recuperar energias, quando chegava. Seu corpo estava sempre em forma, recuperava bem e ela sentia-o como um verdadeiro companheiro.
Depois de finalizar a escola, entrou na Faculdade de Educação Física. Ficou muito feliz. Era mesmo o que queria: atividade física por todo o lado, autorização para utilizar todos os espaços esportivos, gente como ela, uma beleza. A primeira aula que teve foi de ginástica artística. Lá foi ela toda entusiasmada. No primeiro exercício que o professor mandou fazer, sentiu uma coisa esquisita no joelho. Parou. Não se podia parar sem autorização do professor. Antes que ele estranhasse, explicou que sentiu algo no joelho e teve dificuldade em caminhar na sua direção. Caminhava devagar, com a perna meia dobrada. O professor mandou-a sair da aula e dirigir-se a um hospital. Ela nem queria acreditar. O corpo dela era um espetáculo, era resistente, nunca tinha tido uma queixa. Como agora, com um simples e leve exercício, aquilo foi acontecer? Saiu da faculdade a mancar. Foi até ao hospital mais próximo, devagar, sentindo dores, preocupada. Na sua cabeça, os pensamentos mudavam a cada instante. Umas vezes desejava que não fosse nada de especial, outras vezes já se imaginava numa cirurgia. Mal chegou à Faculdade e a uma cidade grande e já tinha um enorme problema para resolver. Estava destroçada. Percebeu que estava a chegar ao hospital. Começou a subir umas escadas que existiam na parte da urgência desse hospital e reparou que conseguia subir bem. Reparou que já não sentia dor, reparou que o joelho já parecia bem. Olhava para ele e parecia-lhe bem, deixou de ter dor, ele dobrava e esticava bem e facilmente, sem dor. “Será possível que tudo desapareceu assim, num passe da mágica? Parece que sim. Meu Deus que alívio! – pensou.
Fez cinco anos daquela faculdade exigente, sem uma única queixa do joelho. Foi atleta durante mais de vinte anos e nunca teve problemas de joelhos. Professora, treinadora, durante mais de 30 anos e nunca teve um único problema com os joelhos.
Uns bons anos mais tarde, idosa, foi a uma consulta médica.
- Olá Dona Flor
- Olá Sr Dr. Como está?
- Eu estou bem, mas preciso de lhe falar num dos seus joelhos. O direito. Está com uma artrose séria. Desculpe falar assim direto ao ponto, mas a senhora vai precisar de colocar uma prótese. Não tem de ser já. Habitue-se à ideia e diga-me quando será o melhor momento, está bem?
- O melhor momento é quando quiser. Pode ser já hoje.
- Sério? Ok, então vou começar a tratar disso. É uma mulher corajosa e forte. Sim senhora.
- Não Dr., não sou. Está é na hora da reforma desse joelho. Já me deu muito. Muito mais do que eu esperava.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments