Conto “MARCAS DA MEMÓRIA”
Estava – pode-se dizer – ficando velho. Ai... como “bicha velha”, queria morrer protestando contra homofobia ao invés de, melancolicamente, se trancar no armário - ai... de novo, não...
Em 40 anos, o mundo tinha avançado - mas não estava ainda nem próximo do perfeito. AIDS, controlada – uma quase vacina, além de todos os seus amigos que sobreviveram ao momento X, o momento da praga e da morte terem a doença recordada pelos comprimidos ainda necessários – muitos assintomáticos, casados e felizes.
Isso era outra coisa. Poder dizer “casado” era uma novidade que as novas gerações adquiriram e nem perceberam o significado. Também ver, na casa dos hipócritas como é a política, senador gay, governador que anuncia que é gay, vereadora trans, deputado... Mas ao mesmo tempo, nunca se matou tanto em nome de uma falsa moral. Porque se a moral fosse verdadeira, não mataria.
Um pouquinho de batom? Não. Brilho e tudo ok. Queria estar discretíssimo para a cerimônia onde seu namorado ia ser homenageado. Sim. Já dava também pra rimar “viado” com homenageado. E com toda a discrição possível estaria lá, mãos dadas com ele, celebrando o momento. Olhares sutis, como era a sua marca – mas marcantes.
O mundo caminhava devagar, o Brasil ia naquele passinho hipócrita claudicante de sempre – mas mancando ou não, íamos adiante.
Tirou um fio de sobrancelha, penteou-as caprichosamente e mandou um beijo para o espelho.
SMACH!
Até que bicha velha também “tinha um certo charme”! Ajeitou a roupa, colocou mais um pouquinho de perfume – exagerada! - e bateu a porta.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Um abraço e duas beijocas”
Pessoas que estavam nos hospitais, muito magras, cheias de feridas, com doenças oportunistas, sofrendo a cada segundo. Sem cura, sem futuro. Essa era a definição de alguém com SIDA/AIDS, que Ana aprendeu, quando a doença surgiu. Parecia que existiam pessoas que tinham o vírus mas não os sintomas. Pessoas que infetavam mas não adoeciam. Pouco mais sabia. Não podia perguntar a ninguém, não existia internet. Era tudo segredo. Nem se falava que a pessoa tinha Sida ou Aids. As pessoas morriam de pneumonia, de infeção generalizada, nunca de AIDS. Tabu total. Um amigo de um amigo ficou de repente com uma doença estranha para alguém da idade e saúde dele – meningite. As pessoas falavam baixo ou com meias palavras que ele talvez tivesse “aquilo”. “Sério?” “Sério! Mas não digas a ninguém...” Ana percebeu que as pessoas amigas não o iam visitar ao hospital. Quase todos tinham trabalho, compromissos, tarefas. Amigos de circunstância afinal. Ela quis ir visitá-lo. Não tinha nenhuma obrigação e mal se conheciam. Viu e falou com ele uma vez apenas. Não faria grande diferença ir ou não ir para os outros. Mas ela quis ir. Foi com uma pessoa que se dizia amiga dele. Ana acha que a pessoa foi com ela para não parecer mal, mas ia cheia de medos, de preconceitos. No hospital, no quarto, ele estava de pé quando entraram. Ana sentiu nele uma alegria de um segundo e de imediato um recuo. Ele ficou contente mas Ana sentiu que ele parecia não querer “obrigar” as pessoas a aproximarem-se, a darem um abraço. Nessa época já se sabia que se podia abraçar, tocar, beijar, mas as pessoas insistiam em manter suas crenças bizarras. Ele recuou para não se desiludir por nós recuarmos? Ana não sabe. Só sabe que estava tudo pronto para não se aproximar. Mas ela não foi ali para manter um preconceito. E foi isso que fez. Aproximou-se, perguntou se o podia abraçar, ele ficou meio sem graça, disse que sim, que podia. E foi um dos abraços mais gostosos que Ana deu na vida. Um abraço, duas boas beijocas, de verdade, de carinho, de quebra de preconceitos, de preocupação apenas pensando no bem estar dele. Seus olhos brilharam, os da Ana também. Nunca mais se viram. Ela não sabe se ele sobreviveu, como foi a sua vida a partir desse dia. Ninguém mais lhe falou nada dele. De alguma forma o “grupo” que se dizia amigo a afastou das notícias. Ana, ficou para sempre, sem saber dele. No entanto o abraço e os beijos esses ficaram gravados na sua cara, no seu corpo.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments