Conto “A SUPERPRODUÇÃO DE VERDADES, NA ABIN”
Lá estava a sua TV sendo – de novo – mais surpreendente que todas os filmes e séries que ela tinha visto no Brasil no ano passado.
- Haveria então um sistema espião israelense, comprado pela Presidência da República, que monitorava pessoas, sem autorização judicial no Brasil, gente...
Alguém poderia dizer que tinha um monte de não famosos e que era apenas algumas autoridades que foram monitoradas, mas se o sistema funcionava sem autorização de ninguém, se podia espionar qualquer pessoa, importante ou não importante - paquera, amante do chefe da vizinha, um ministro de estado, qualquer pessoa...
Os olhos dela estavam pasmos, fixos na TV. Nem tinha ido trabalhar porque a vacina de COVID lhe dava sempre aquela reação chatinha e só restou ficar em casa mesmo, meio tempo deitada, meio tempo sentada, mas sempre de frente para a informação.
- Se as pessoas eram surpreendidas pelo uso do programa espião, quem monitorava poderia inventar várias fakenews, omitindo quem estava com ela num grupo, por exemplo:
- Seu marido foi visto no Hotel tal – sem colocar que a esposa estava junto e que todos estavam jantando no restaurante novo.
- “Viram o seu marido”. Seu marido foi visto, com certeza...
Era algo como um espião com vocação para fofoqueiro, duas caras, intriguento.
- Wow... Suspeito de todos! Os responsáveis de antes, mas também todos os de agora: quem garante quem está mancomunado com esse plano? Aliás, esse pessoal quer prisão perpétua pra quem pega uma borracha, mas não acha crime colocar esse espião pra invadir a vida de milhares de pessoas, monitorando a vida de quem eles quiseram.
O pai logo contemporizou: “peraí, deixa disso, política é suja, minha filha” - mas ela se manteve irredutível:
- Meu pai, crime não tem ideologia. Você mata sua mulher e é feminicídio. Sempre é assim. Sempre vai ser assim. Não é perseguição porque é crime. Então vamos imaginar que na minha família cinco tios roubam galinhas no vizinho, mas só três poderão ser julgados porque alegaram que muitos parentes foram presos ao mesmo tempo! Pare com isso, meu pai. Se as pessoas tivessem tino, tivessem juízo, não se precisaria de polícia porque elas iriam parar por si mesmas. Iam dizer apenas: “Desculpe excelência, mas isso eu não faço porque é ilegal”.
Seu pai calou para não encompridar o assunto, mas ela foi atrás dele com reação à vacina e tudo – cansada que estava de ouvir a mesma ladainha no Brasil:
- Meu pai, as pessoas insistem em confundir corrupção com oportunidade e isso está acabando com a cabeça delas. Eu provo, meu pai! Por exemplo, o funcionário comenta: “o diretor me ofereceu esse cargo e eu nem preciso ir trabalhar, se devolver pra ele 80% do salário! Olha que maravilha! Ganho esses 20% no mole!”. Ou: “Minha filha não tem a formação necessária para o cargo, mas o deputado falou que ele segura a minha onda, se eu arrumar votos pra ele. Não tem bom coração?”.
- Isso é oportunidade ou corrupção, meu pai? Eu estou contribuindo ou me sujando, aceitando ser cúmplice de uma pessoa, só porque ela mais poderosa do que eu?
O pai saiu batendo a porta.
- Verdade é fogo! – ela murmurou baixinho.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O passado sempre presente”
- Senhora?
- Sim?
- Esta caixa também é para deitar no lixo?
- Deixe-me ver de novo.
Abençoado aproximou-se, abriu a caixa e aguardou a decisão dela. Já estava habituado. De vez em quando ela colocava coisas para descarte, para doar, para deitar fora, mas passado alguns meses já nem lembrava o que era. Para não se arrepender, gostava de confirmar na hora que Abençoado ia em sua casa para a ajudar, na hora em que ele realmente levava as coisas e ela nunca mais as teria, nunca mais seriam dela.
Aquela caixa aberta, nas mãos de Abençoado, na sua frente, parecia que olhava para ela perguntando porque ela já não a queria mais. Choramingando. Como se se sentisse a caixa mais miserável do mundo. Mas ela não olhava a caixa, aliás nem pensava nela. Olhava em silêncio para o conteúdo. Olhava e imediatamente voltava para momentos da sua vida que tinham acontecido há mais de 30 anos. Abençoado percebeu que mais uma vez algo que ela decidiu descartar da sua vida parecia se agarrar a ela com unhas e dentes. Percebeu que ela teria de ter um tempo sozinha com a caixa e o seu conteúdo. Novamente um tempo de despedida, um tempo de desapego, um tempo de deixar pra lá, fosse o que fosse. Pousou a caixa no seu colo com o maior carinho e disse:
- Deixe-me só pousar a caixa no seu colo por uns segundos, enquanto vou ver quem tocou à campainha. Já venho.
Ela nem respondeu. Tentou várias vezes conseguir a coragem para fazer o descarte daquelas coisas que estavam dentro da caixa. E sempre que abria a tampa e seu olhar via o conteúdo, acontecia o mesmo – viajava para esse momento, parava no tempo. Atolava, sofria. Mas realmente tinha chegado o momento. Agora tinha mesmo de ser. Virou tudo no seu colo. Acomodou a caixa e as coisas espalhadas no seu colo e foi se despedindo de cada recordação.
Uma por uma. Pegava com a mão direita, tentava guardar a sensação, a recordação, a experiência e colocava de volta na caixa.
Duas rolhas. Representavam a sensação de ter tido uma família. Em criança e adolescente, no final de cada refeição de domingo, os adultos ensinavam a colocar cada rolha entre o polegar e o indicador e era preciso conseguir retirar ambas as rolhas, ao mesmo tempo, com as pontas dos dedos, do polegar e indicador de cada mão. Parecia tão fácil na mão dos adultos, parecia tão difícil nas suas mãos.
Um guardanapo, dobrado de uma forma que parecia um coelhinho, um esquilo. Nunca quis aprender a dobra do guardanapo ou nunca conseguiu, não sabe bem. Mas sempre recordou os momentos em que o pai dobrava o guardanapo, o colocava na palma da mão, falava com o bichinho enquanto lhe fazia festinhas. Sempre soube que era apenas um guardanapo, mas sempre acreditou na vida daquele bichinho que, de surpresa, subia o braço do seu pai, com uma velocidade que a assustava ao mesmo tempo que a fazia dar sonoras gargalhadas.
Uma fita igual à que Bjorn Borg, o tenista que sempre admirou, utilizava. Era uma fita barata, fácil de encontrar na sua época de menina. Não era o valor financeiro que lhe importava. Era a sensação de ser capaz de tudo quando a colocava no seu cabelo comprido, negro, despenteado. Eram os olhares das pessoas rindo do seu ar de jovem sem noção e era a sensação de ter valor, de ser capaz.
Pronto, tudo guardado de novo na caixa. A caixa fechada de novo.
- Abençoado?
- Sim?
- Vem cá
- Diga
- Senta aí uns minutos. Vou te ensinar umas coisas para depois ensinares os teus filhos. E depois, fazes o que quiseres com a caixa, ok? Descartas, ofereces ou ficas com ela e com o que tem dentro. Combinado? Vá, vem cá, senta mais perto de mim um pouco.
Ana Santos, professora, jornalista
Comments