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2 Contos: "A ESCURIDÃO, PELO BRASIL” e "Apenas bonecos"


Prédios altos em tons cinza.
Sede Social do Jockey Club Brasileiro / Lucio Costa - site archdaily

Conto “A ESCURIDÃO, PELO BRASIL”

Usava o ônibus cheio de todos os dias para, como sempre, assistir aos principais comentários, pelo celular. O pessoal de São Paulo sem luz e comendo a mosca de sempre, com aquele prefeito péssimo – pensou ela.

- Como é que pode votar num cara que não preparou a cidade pra nada no clima extremo, “migo”!

- Gêmeos! O que vai acontecer em novembro você descobre depois da vinheta! Astros em momento difícil... Marte tem aspectos soturnos com Plutão e isso em outras épocas teve como resultado guerras, a invasão da Ucrânia e...

- Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá...

Ela nem entendeu direito o barulho no primeiro segundo, mas quando os olhos dos passageiros começaram a se cruzar, todos viram o pânico refletido uns nos outros.

- É tiro!

E aquele Rio de Janeiro de Ipanema ficou como memória distorcida de um passado onde havia Tom Jobim e liberdade de andar na rua.

- Pula do ônibus! Pula, galera!

Janelas de emergência usadas, gente nova, gente velha, todo mundo pulando em busca da mureta que era anti-acidente e que tinha virado anti-tiroteio.

Cada tiro dado lhe soava como aquele maldito voto dado no amigo do amigo ou naquele, trocado pelo saco de cimento do político corrupto, totalmente do mal, no voto que ela tinha dado pra não desagradar ao pastor, ao padre, em ter aceito sem reclamar o miserável “bandido do Senhor” que matava, dava tiro, violentava a vida das pessoas, gritando o nome de Deus - como se Deus pudesse habitar aquele mundo, o discurso de ódio, a mente podre e suja das pessoas...

De repente: pá! – e o som oco. Parecia uma melancia caindo... ali, deitada no chão do ônibus, viu seu amigo amolecer, como se tivesse adormecido – mas não. Era tiro. Era mais um morto por tiros. Era guerra, num País sem guerra.

Foi afastada do corpo morto do amigo e por duas, três horas, era apenas mais um daqueles corpos ainda vivos, deitados no asfalto da linha Vermelha.

- Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá...

À tarde, já se via o governador gaguejando desculpas que tentavam jogar a culpa da sua incompetência em algum lugar, do mesmo jeito que o prefeito de São Paulo teve a ousadia de colocar a culpa do apagão nas árvores que ele nunca podou, na segurança que o governador nunca deu, na mudança dos voos pelo aeroporto do Rio que o prefeito de lá negociou. No crédulo Ministério da Justiça, que confiou que aquele governador claudicante fosse capaz de fazer algo além de gaguejar desculpas.

- Eles nunca chegarão aqui como nós, de ônibus. Quero saber é quando iremos vê-los e expulsá-los das nossas vidas pra sempre...

E foi assim que, ano a ano, cada pedacinho do Brasil recebeu mais bandidos, traficantes, milicianos, corruptos miseráveis entre lobistas e suas causas torpes, juízes vendedores de sentenças e políticos. Algo como se a treva fosse tomando, palmo a palmo, metro a metro, aquilo que um dia se chamou Brasil.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

 

 Conto "Apenas bonecos"

- Dra?

- Sim?

- Sua paciente das 14h, chegou.

- Ok, pode mandar entrar.

...

- Oi Ana. Pode sentar.

- Oi Dra.

- Então Ana? Como correu sua semana?

- Bem.

- Me conte o que fez.

- O de sempre Dra. Passei os dias no computador.

- Mas não tínhamos combinado que ia tentar fazer outras atividades?

- Sim, mas não senti vontade. Para quê fazer outras coisas?

- Para ter outras experiências, Ana. Para viver. Amadurecer. Fazer amigos. Descobrir novas coisas. Aprender outras. Perceber seus limites, enfrentar seus medos, errar, ficar aborrecida, insegura, assustada. Para depois dar mais valor aos momentos felizes, de bem estar, de prazer. A gente falou tudo isso na consulta passada, Ana. Você precisa dar esse passo.

- Eu não quero. Aqui até fico com vontade, suas palavras me entusiasmam, mas depois chego em casa e é muito mais fácil continuar a fazer o que faço – nada - entretida no computador, no celular, dormindo.

- Precisa cortar esse rumo habitual, Ana. Vou dar-lhe uma tarefa aqui no consultório até terminar a nossa hora, ok?

- Ok.

- Estou fazendo uns bonequinhos de papel/ papier marchê para oferecer aos meus amigos neste Natal e estou na fase de os pintar. A minha vizinha esteve a pintar a casa e me deu umas sobras de tinta. Tenho um pouco de tinta vermelha, azul, branca, preta, castanho claro. Cada boneco diferente dos outros. Pode pintar o que quiser, como quiser. Não existe errado, não existe padrão, não existe gostar ou não gostar. Uma tarefa rápida. Tem um pequeno pincel dentro de cada latinha de tinta. Vou lhe dar um boneco para pintar hoje.

Ana levantou, foi para a tarefa, meio chateada, meio amuada. Fez a tarefa. Levantou, despediu-se da Dra e foi embora.

- Dra?

- Sim?

- Sua paciente saiu meio chateada daqui. Será que volta?

- É normal essa reação. Volta, volta sim. Relaxe.

Passou uma semana.

- Dra?

- Sim?

- A sua paciente das 14h já chegou.

- Já? Mas ainda são 13h!

- Pois é. Mas ela falou que veio mais cedo para tentar pintar dois bonecos, em vez de um. Não entendi nada.

- Ahahahah, não entendeu nada, mas acredite que isso que ela falou é ótimo. Pode mandar ela entrar.

- Já?

- Já...

Ana Santos, professora, jornalista

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