Desiree Beck e Aimée Lumiere no Tropos Gastrobar – Rio Vermelho - Salvador
Joãozinho 30 dizia que ‘O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual’. Um bom espetáculo Drag é luxo inteligente, humor com toques de malícia e vitalidade. VITALIDADE é uma palavra mágica, aliás – quanta energia cabe em uma pessoa para que ela cante, dance, faça mímica com sincronicidade, use como palco todos os espaços livres e ainda tenha elegância, exuberância? Pois é, num show com duas drags como Desirée e Aimée, a gente vê tudo isso em dobro.
Como trabalho exatamente com dublagem e mímica, sentei de frente, pra não perder nada. Na frente quer dizer a 1 metro de distância, no máximo 2 - E, além de toda a exuberância de que já falei, acompanhei uma expressividade no olhar de Desirée, um domínio cênico enorme das duas num espaço físico tão pouco provável que se construíram ali grandes momentos. As duas têm uma interação muito boa, improvisam, brincam, conversam. Em termos de interpretação, Aimée deu show numa mímica de fumante e num dado momento cantou como um passarinho, com sua própria voz. Desirée “encarou” a interpretação de uma evangélica que colocou fogo na plateia. E tudo isso num ritmo alucinante.
A escolha do repertório é feliz, pra se dizer o mínimo – adoro as divas cantando e re-curtir Whitney, Barbara, etc continua sendo mágico. Quando uma mímica é bem-feita e você consegue sair da posição de “caça-erros” é sensacional - principalmente no meu caso.
O humor precisa sempre de uma engenharia complexa porque me incomoda a busca pela risada nascida apenas da vulgaridade em qualquer espetáculo. Mas vi um humor rascante,
sempre inteligente e sem medo de balançar conceitos.
Não foi um show perfeito, houve vários pequenos problemas técnicos que atrasaram o ritmo, o próprio espetáculo sofreu um atraso importante, mas isso foi totalmente compensado. No início da madrugada, eu já estava entregando os pontos e as meninas continuavam lotadas de energia. Valeu cada segundo.
A pergunta que fica: se as nossas meninas Drag têm esse nível de qualidade – e eu mesma já dei aula à muitas – por quê elas ainda não estão ocupando a faixa espetacular da noite, em Salvador? Elas são um luxo!
ANA RIBEIRO
Diretora de cinema, teatro e TV
O Bug Latino foi convidado a assistir a um show das Drags Desiree Beck e Aimée Lumiere, no Tropos Gastrobar, do Rio Vermelho, Salvador – Bahia. Muito gratas pelo convite.
Quando assisto a um show que envolve esforço físico, logo fico curiosa e observando tudo: os movimentos, a energia, a capacidade, a entrega, etc. Ser atleta não é só ter roupa esportiva e desempenhar uma atividade recreativa ou competitiva. Ser atleta é entrega total, talento no que escolheu fazer, muito trabalho na preparação para as suas atividades profissionais, preparar com planejamento /planeamento, ter “um jogo de cintura” elegante para resolver problemas que podem surgir do nada. Os atores, artistas transformistas, são atletas. Seu nível de entrega no que fazem, determina o nível de foco da plateia. É importante estar sempre a 100%. O público amigo aceita tudo, mas o público que não nos conhece e precisamos ganhar, é muito exigente e às vezes cruel e injusto. É preferível fazer um show mais curto, mas que deixe vontade de voltar, do que prolongar um show por interesses profissionais do local e o público passar o foco para a conversa entre os amigos da mesa. Mas “Business é Business”.
A capacidade de aceitar e procurar satisfazer público, responsáveis do lugar, fazer o show com o mais básico, em lugares pouco adaptados para a situação, não é para qualquer um. São pessoas de muita coragem, determinação, talento, persistência, resiliência. E isso é de “se tirar o chapéu”. A sociedade precisa de dar mais valor a essas raras qualidades, em vez de partir logo para críticas e ideias pré-concebidas sem fundamento.
Tive mais dificuldade de entender os comentários de Aimée do que os de Desiree. Acho que pode ser por Aimée falar mais rápido e ter um humor mais “ácido” e construído na rapidez de raciocínio e de associação de frases de assuntos que não conheço. “Boiei” geral muitas vezes, com pena. Julgo que se fizerem estes shows para turistas, valeria a pena Aimée “lentificar” seu discurso e variar entre a complexidade e a simplicidade de humor. É um discurso muito inteligente e que aborda níveis de cultura geral altos, por isso, é uma pena perder informação por causa da rapidez extra. Tem uma mímica extraordinária e elegante, parecendo mesmo que está a cantar. E também canta bem. Por favor, cante mais vezes e mais tempo.
Desiree tem uma elegância e uma doçura, misturadas com um fogo que cativam. Uma enorme capacidade de lidar com pessoas, de resolver problemas com elegância e discrição. Um radar de observação sobre o momento, enorme capacidade de se adaptar, diversidade de desempenho e de temas.
As duas fazem imaginar, sonhar, mergulhar no mundo do fantástico. Eu sempre prefiro os momentos elegantes, mesmo de humor. Mas percebo que o público prefere muito mais os momentos acrobáticos, bizarros e performáticos. Parabéns às duas. Obrigada. Quem puder assista aos seus shows. Elas andam por aí.
Ana Santos, professora, jornalista
Espaço Cultural Caras & Bocas – R. Carlos Gomes – Salvador - Bahia
Cada vez que recebemos um convite pra assistir a um novo espetáculo é uma coisa super nova e que dá um pouquinho de frisson porque é um trabalho do qual gostamos muito. Mas esse convite foi especial: nossos alunos da primeira formação de atores drags e trans nos convidaram pra conhecer o trabalho das drags monsters, no Centro de Cultura Caras & Bocas.
Pontos negativos: há um vizinho "lunático do mal" que eventualmente joga umas pedras de gelo no telhado da casa; não sei se me acostumo a ficar acordada até tão tarde; o som precisa de ajuda; umas tiradas meio óbvias, de vez em quando.
Pontos positivos: Todos os outros! Ambiente tranquilo, paz total, uma boa parte da noite com shows muito bons, artistas ousadxs, um bom humor tão permanente que aponta para uma forma de resistência social e arte de qualidade, mesmo com poucos recursos. E cada performance, cada maquiagem, cada coreografia... Se um lugar com poucos recursos técnicos recebe tão bem seu público como uma opção de peso para as noites, o que aconteceria se obtivessem apoio?
As mímicas foram muito boas. Não exatamente todas, mas a grande maior parte. O palco, pequeno, nem é visto por ninguém como impedimento pra quebrar a quarta parede e dançar perto das mesas - o que é sensacional. Também o fato de estarmos na Carlos Gomes, no meio da madrugada, dá aquele ar underground necessário pra gente se sentir invadindo a intimidade da cidade, da noite. Até o vizinho "maluco do mal" entra na onda boa porque tudo na vida precisa de um vilão pra gente conseguir apreciar os "mocinhos do filme" e lhe fica muito bem o "papel miserável".
Queria eu agradecer o convite dos alunos, a acolhida de Rosy Silva, dona do espaço, o espetáculo, as apresentações que encheram minha madrugada de terça (!) de divertimento e a minha quarta de sono torporoso e sobretudo ao público alegre, receptivo, educado que apontou com bastante clareza que o meu lugar entre rosas e azuis, talvez seja o de "pois" rosas, num fundo azul. Porque muito mais gente deveria exercer o seu direito à convivência com a diferença. Faz bem a alma se ver parte de um mundo onde todos são bem recebidos. Todos.
Ana Ribeiro
Diretora de teatro, cinema e TV
Um dos lugares de Salvador onde a diferença é uma qualidade, onde a ousadia estética e de performance é bem recebida, onde a criatividade não precisa de limites e por isso permite que os próprios artistas transformistas se superem, se provoquem e voem. Tem shows todos os dias. O Bug Latino assistiu a um show da “Terça Estranha” e adorou. Nesse dia, viu várias artistas transformistas maravilhosas: Miguela Magnata, Marie Flamel, Azvdo, Tyna Vhermont, entre outras. A artista transformista se apresenta de forma mais próxima de estereótipos femininos, ou de estereótipos masculinos, ou como Monstra onde os caminhos são sem fim e sem estereótipos. Todo o figurino e maquiagem podem ser femininos e ter uma barba por exemplo. Sua barba pode ser de papel, ou não. Onde a imaginação, a capacidade de concretizar o que sonha e deseja decidem o momento sempre extraordinário.
Um lugar tão familiar que pode deixar o celular/telemóvel e a carteira, na mesa, que se quiser pode partilhar a mesa e que, quando está lotado, todos/as parecem um/a. Muito legal esta sensação. E estamos a falar de um lugar pequeno, com um mini palco, com pessoas a passar para o banheiro/casa de banho enquanto a artista transformista faz parte do seu show no corredor entre as mesas. Intimista, familiar, cru, sem rede, muitas vezes a luz ainda não está pronta quando o show começa, a música às vezes também não está no ponto, mas quer saber? Escolho mil vezes um lugar assim onde me vejo e vejo todas por inteiro. Um lugar imperdível, com shows imperdíveis, com energia imperdível. O que espera? O dia seguinte é mais ensonado com certeza mas vale a pena o esforço.
Ana Santos, professora, jornalista