Preto. Sombras. Chamas. Dor. História.
Esta foi a peça que fomos ver.
Desde que entramos na sala de teatro que nos deparamos com um ambiente casual e íntimo, onde o músico e os atores interagem com o público, fazendo-nos sentir incluídos e imersos nesta peça que já tinha começado antes de se quer ter um início.
O título é simples e de fácil compreensão, no entanto abstrato. Toda a história, luta e sofrimento foi confinado a uma simples definição em nos reduz a uma cor, uma categoria. No entanto, foi feito de forma perspicaz, pois só pela palavra “preto” somos confrontados com o efeito do racismo.
“Como é ser você?” perguntam. De facto, quase ninguém sabe responder a essa simples pergunta. E porque haveríamos? A verdade é que, na maioria das vezes que as pessoas pretas são interrogadas para contar sobre si, a pergunta vem mascarada de “como é ser preta/preto?” Somos então emergidos numa fusão de questões, narrativas, diálogos, discussões, cogitações e performances pelos olhos de cada ator, onde se dá ao espectador a oportunidade de criar a sua própria reflexão sobre as representações sociais que se revolvem nesta longa luta de desigualdade social e racismo no Brasil.
Somos interpelados com uma sequência de pensamentos. Preto, sombras, chamas, fogo. E o fogo, como foi dito, é a nossa maior arma de defesa e proteção, mas também como perigo. É com ele que nos abrigamos, e é com ele que nos queimamos. Obtemos o poder em dualidade, e cabe-nos escolher o que fazer com ele.
De momentos de puro e intenso erotismo, onde os corpos fluídos se juntavam e dançavam ao som de cada palavra repleta de desejo, para uma nudez de um corpo desprotegido e abandonado pela sociedade, onde utilizam o tal poder exacerbado contra os desamparados, apagando vidas a cada disparo. E foi uma bala, seguida por outra, e mais outra, e mais outra. É o nosso fogo fora do controle. As nossas chamas se alastraram, deixando nada para além dor e incompreensão.
“As pessoas olham da direita para a esquerda e o Estado esmaga de cima para baixo.”
Direção de Márcio Abreu.
Dramaturgia por Márcio Abreu, Grace Passô e Nadja Naira.
Iara Rocha
Preto. Sombras. Chamas. Dor. História.
“Achas que é possível sentir a tua dor? O teu prazer?”
“Acho que é possível aproximar-me dela… Mas não a quero.”
Calmamente entramos numa sala bem iluminada onde já se faz teatro sem nos apercebermos, onde já se ouve música, onde já se pergunta. De que dor se fala? De que prazer se fala? Da dor que é ser preto, ou do prazer do enegrecimento? Da única coisa que se pode falar, pois só querem que se fale sobre isso – Como é ser preto? Ou melhor, talvez seja melhor perguntar de outra maneira, pois há sempre os entrevistadores desajeitados que com rodeios perguntam vagamente: “ Essa imagem que você carrega, que eu vejo, é mesmo você? Como é ser você?”. Evitam a pergunta. A problemática de o eu preto ser apenas o eu preto, e não o eu, que acontece ser também preto. Indissociável realidade de serem pretos e por isso responderem por isso antes de responderem o seu nome. “Que imagem te comoveu nos últimos tempos?”- perguntam e respondem, com diferentes entoações e palavras, a mesma imagem- manifestações, revoltas, inconformidades, insurgências. Respondem que se comovem por movimentos no qual cada sujeito se despe de si para ser uma causa, para usar a máscara da sua utopia. E por isso mostram-se no palco com grandes máscaras, enormes, da utopia que são e pretendem ser. Máscaras de eles mesmos, porque mesmo na representação esboçada e simbólica deles mesmos, da quimera que são, são obrigados a mostrar que são pretos. São uma utopia e um ideal, mas primeiramente são pretos, e só depois têm um nome. A sua cara é uma tela na qual se fala da negrura que tem de ser obrigatoriamente debatida, e depois fala-se de tudo o resto. E mostram-se para nós. E são pretos para nós. E exigimos que sejam pretos para nós antes que sejam pretos para eles mesmos. “Vou dançar um samba para você. Vou cantar para você” diz mas não se move, não se pronuncia. Não é preta para nós. Essa não é uma dor da qual nos deixa apropriar. Esse não é um prazer do qual nos deixa apropriar. Falarão então de sexo, “oi preta”, contorce-se. Cravas-lhe as unhas e a sua dor estava boa, “a sua dor estava bonita”, a sua dor confundia-se com prazer. Esse prazer do qual nos podemos aproximar, mas não o queremos. Dor da qual nos podemos aproximar, mas não a queremos. Mas também não nos a dão, é delas, e são pretas só para si.
Direção de Márcio Abreu.
Dramaturgia por Márcio Abreu, Grace Passô e Nadja Naira.
Alice Veloso Ferreira