Ah, os invisíveis...
Mas não apenas as pessoas que socialmente são delegadas ao papel de invisibilidade. O mundo deu mais passos para trás e agora temos os invisíveis que não foram delegados a lugar nenhum e por isso são talvez melhor chamados de inexistentes. Eles fogem do mundo e chegam a novos mundos, mas continuam inexistindo.
Nesse sentido, com quase tantos anos entre a minha vinda para Salvador e ida dela para o Rio – praticamente trocamos de lugar no mundo - Ana Paula Bouzas continua com um nível de explosão verdadeiramente incrível. É uma atriz admirável.
Tenho falado repetidas vezes que a plateia baiana precisa olhar para o drama com maior naturalidade, sem o quase tique nervoso de fugir para o riso. Nesse sentido, queria tanto que Ana Paula tivesse um texto onde pudesse reinar no drama... porque quando houve drama, ela reinou absoluta, como sempre. Digo isso porque o esgotamento das relações está se esfregando na nossa vida e a gente continua fingindo que destruir uma pessoa nas redes sociais por qualquer motivo é uma coisa banal. Uma pessoa qualquer é apontada no Facebook como pedófila e no seu único momento de visibilidade na vida, é linchada. Na vida real. Já vi isso no Fantástico.
Ainda assim, é possível passar por uma vida – a nossa vida – sem ser percebido por ninguém, sem ter nenhum “reflexo no espelho” social? Garçom, carteiro, porteiro, lixeiro, guardador, faxineira, auxiliar de serviços gerais, manobrista têm nome pra você?
Eu queria muito que o texto tivesse empurrado essa nova e cosmopolita forma de lidar com as pessoas da vida para o lugar de quem olha interiormente para a culpa da qual fugimos. Porque algum dia, talvez nem haja mais culpa, já pensaram? Não que antes a distância, o abismo não existisse – o que são escravizados? E nem falei eram porque eles ainda são por aí e por aqui. Mas o que importa mesmo é o que são para cada um de nós. Pra você, o que são e sobretudo quem são os seus invisíveis?
Não é engraçado, não é piada, não tem graça nenhuma. É apenas duro, desértico e árido. E Ana Paula, lá no final, sai da possibilidade de um risinho, tira as almofadas protetoras e mostra a dureza. Ali a peça criou asas. Porque existem cada vez mais fatos na vida que nós precisamos ver. Daí eu sentir essa falta abstrata de um texto que levasse Ana Paula para o reflexo metálico das pausas de rancor. Só o olhar sobre o mundo, sobre nós, sobre a vida. Sem nem levantar a voz. Só o domínio absoluto sobre a nossa ignorante cegueira. Porque nós precisamos de um reflexo de dor. Qualquer reflexo de dor que nos tire do marasmo, da anestesia social. Do absurdo da vida de quem se vê, ao abusar.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
O estacionamento da cidade, principalmente de noite, com os aplicativos para pagamento pelo celular, ainda são complexos e nada seguros. Com os meninos e “meninões” da rua te cercando para você lhes pagar. Porque são eles que protegem o teu carro ou riscam ou furam pneus ou pior. Sabemos que não é fácil melhorar essa situação mas o processo ainda tem muita coisa a corrigir.
Os problemas eram os mesmos vividos por todas as pessoas que chegavam ao teatro. E isso permitiu fazer amigos. Bons amigos. E, uma pessoa totalmente inusitada, Zeca de Abreu, se ofereceu gentilmente para pagar nosso estacionamento. E, com esse gesto bondoso evitou que a gente tivesse dissabores. Coisas boas da vida. Coisas de Salvador. Coisas de pessoas boas. Obrigada!
A vida é gente.
Vim a trabalho a Salvador, em 1998. Tive a sorte de ver Ana Paula Bouzas numa peça. Uma luz, uma energia, um esplendor de uma atriz, uma artista de mão cheia.
2020. O mesmo mergulho sem rede. Uma atriz, plena de talento, energia e entrega. Os anos passam mas essa entrega, essa energia permanecem. Impressionante.
O tema da peça é muito presente na sociedade brasileira. O “inferno” que vivem as empregadas domésticas e das quais dependem famílias com dinheiro, mas que perdem a capacidade de se cuidarem, de autonomia, de independência. E essas profissionais que sustentam estruturas familiares poderosas, existem enquanto entidades invisíveis e neutras. Que educam os filhos, cuidam das casas, das rotinas, resolvem os problemas mundanos, tratam dos membros das famílias doentes, envelhecidos. Mas que não têm muitas vezes direito a opinião, a existir, nem a ter problemas seus e de suas famílias. Que muitas vezes precisam de marcar a distância física com os homens que vivem nas casas que cuidam. Que aprendem a saber os segredos e a guardar a “sete chaves” e “nunca saber de nada”.
Alguns momentos tive dificuldade de entender algumas palavras, em frases mais rápidas ou com mais energia. Difícil arte de manter diálogos constantes, rápidos e variados. De articular essa rapidez com as expressões faciais. Uma rapidez e uma capacidade avassaladora de mudança de sorriso, para choro, para alegria, para tristeza, para raiva, rancor, etc. Um cenário fofo que mostra a “vida no meio das panelas”, como dizemos em Portugal. E um figurino inacreditavelmente idêntico ao das empregadas domésticas. O momento e figurino quando acontece a festa é tão exatamente assim que é chocante. E que a plateia ri para não se envergonhar.
Tocante, expõe as vergonhas de seres humanos de uma classe social por serem patrões de seres humanos de outra classe social. Pessoas que não limparam bem, que a comida estava fria, ou quente, ou salgada ou sem sal, ou que as coisas saíram do lugar ou não saíram. O patrão precisa mostrar que é patrão, dando ordens sem saber o que custa fazer o que manda. No esporte se aprende a fazer para dar valor a quem faz. E no mundo, saber cozinhar, saber cuidar de uma casa é saber sobreviver. A partir daí respeitar quem faz aquilo que sabemos quanto custa, muda tudo. Poder ter alguém para o fazer é bom mas não deve ser uma prisão e sim uma colaboração. Ao saber fazer temos melhor noção do que pedimos e do valor que tem ter uma empregada que é um ser humano que precisa ser olhado, respeitado e cuidado como ser humano.
Quando essas pessoas são necessárias julgo que existe ou se constrói um respeito mútuo e uma ligação afetiva que é como família. Se inclui na família e no coração essa pessoa. Quando são vistas como luxos ou extras que o dinheiro pode, julgo que tudo muda. Muda o carinho, o respeito, muda tudo. Se escondem segredos que afinal essas pessoas descobrem facilmente. Se escondem fragilidades que ficam expostas nos momentos mais inesperados. As pessoas ficam dependentes dos empregados. As pessoas não decidem o que comem, o que vestem, os ritmos da sua casa. São os empregados que decidem. Suas vergonhas e intimidades estão expostas a pessoas que muitas vezes nem se respeitam.
Quem circula nas ruas, entre as 5h e as 6h para passear o seu cachorro ou fazer a sua atividade física antes do horário de trabalho, vê a circulação de uma população especial – as empregadas pobres e negras que cuidam das famílias ricas e brancas da cidade. Cuidam dos seus filhos, dos seus problemas, de tudo. E, no final do dia, voltam para os seus problemas familiares sem ter tempo para os resolver porque daqui a poucas horas precisam voltar para tratar da vida dos patrões. Arrepiante. Mais arrepiante nas manhãs ou finais de dia de Natal, Páscoa, Ano Novo...
São decisivas na vida de um país, das famílias poderosas do mundo e deviam ser tratadas e respeitadas com seu devido e enorme valor.
Uma peça com uma ideia sensacional e que pode ser eterna, atualizando os problemas de acordo com as cidades, estados ou países onde forem se apresentar.
Em Portugal existem famílias enormes com empregadas que viraram família. Pelos anos que estão na casa, mas também pelo carinho e ligação emocional. Empregadas que se ficam doentes, são levadas ao hospital pela família e mesmo querendo ficar sozinhas porque não estão habituadas a serem cuidadas, ficam felizes pelo carinho. Porque são amadas, realmente amadas. Depois, como aqui, também existem os que têm muito dinheiro e que empregada é “Status” e novamente são consideradas pessoas objetos a quem se paga para executar as tarefas. Mas a maior parte das pessoas em Portugal não tem condições para isso e aprende a fazer tudo. ANA PAULA MARCOU ISSO MUITO BEM, SEM DÚVIDA.
Não perca a oportunidade de ver o trabalho de uma grande atriz e não perca a possibilidade de se rever no que a peça aponta.
Ana Santos, professora, jornalista
Teatro Sesi – Rio Vermelho
http://www.teatrosesiriovermelho.com.br/
Ana Paula Bouzas
https://www.facebook.com/anapaula.bouzas