Há textos onde as palavras se destacam e há outros, como este, “Departures”, onde os silêncios é que reinam absolutos.
É um texto terrivelmente denso, difícil de engolir – principalmente porque o Brasil tem essa mania de romancear tudo e quando se depara com a terrível realidade da perda de liberdade, a dor, o sentimento de impotência torna tudo ao nosso redor preto e branco.
A plateia me causou muito embaraço porque uma meia dúzia de pessoas estava inquieta, visivelmente incomodada com o texto e, sem se fazer nenhuma pergunta, apelava para as fugas infantis de sempre, como usar o celular, derrubar coisas, sair da peça ao meio.
Afinal, aqui na cidade, só acontecem coisas maravilhosas e não se aguenta um pouco de “vida real” reapresentada pelo teatro? Ou - aqui no Brasil estamos em perfeita harmonia, equilíbrio e desenvolvimento, não temos mendigos, a carga tributária é baixa e, portanto, não suportamos ver refugiados internacionais, sejam eles cubanos, venezuelanos ou quenianos. Não suportamos ver o sofrimento, a perplexidade, a dor, a falta de interlocutor confiável e passar fome, sem ter lugar pra onde ir, um espaço para dormir.
A peça me causou enorme sensação de cansaço e vazio porque há refugiados em fuga de todas as direções e em todas as décadas nos últimos 60 anos e a humanidade não aprendeu nada, não estabeleceu nenhuma ação de desenvolvimento social global, regras a cumprir, nada, nada. Ficamos falando na direita e na esquerda, justificando passos errados de um lado e de outro, mas o que vale é apenas que precisamos de liberdade. No nosso caso, o Brasil, como não teve nenhuma ditadura à esquerda, tem uma posição mais romântica sobre a ideologia, o que – para os que confundem ditatura militar com colégio militar – gera controvérsias – todas elas estúpidas.
Ver Departures define claramente o que importa – importa ser livre. Se o Brasil/Bahia puder ver o esgarçamento do livre pensar ao assistir ao espetáculo, poderá dar passos atrás, votar na direita ou na esquerda, mas procurar um representante e não cair na balela de procurar e votar e achar um herói a qualquer custo. Em Cuba, na Nova Zelândia, no Peru, na Patagônia ou no Brasil só há um herói e a ele chamamos povo. Somos nós que queremos melhorar e que pagamos caro cada passo que damos. Os prefeitos das cidades do Canadá andam de trem com as outras pessoas todos os dias – também quero isso! A primeira ministra da Noruega não divulga nome de terroristas, não lhes dá nenhuma cobertura de mídia – também quero isso! E também não quero mendigos nas ruas, não quero pobreza, quero boas escolas e hospitais que atendam a todos com igualdade. Igualdade... quanto falta para termos o item igualdade? E em Cuba?
Uma peça necessária. Bastaria dizer isso.
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
Na Europa nos habituamos culturalmente a ver peças sérias, duras, lentas, difíceis. Ir ao teatro é uma caminhada interior séria e dura, não é um divertimento. Lembro, por exemplo, da peça adaptada do livro “O Ano do Pensamento Mágico”, com uma atriz sentada num sofá, durante duas horas, falando do ano em que a sua vida mudou com perdas profundas. Um teatro lotado com mais de 500 pessoas em absoluto silêncio. Duas horas. Nem uma tosse. Na cultura baiana o teatro procura caminhos de humor, sedução, erotismo, crítica, ironia, na grande maioria das vezes. Mesmo as obras dos grandes dramaturgos do leste da Europa, que aqui são revisitadas com frequência são abordadas de forma humorística, irônica, sarcástica. As pessoas riem e querem sair das peças divertidas e bem dispostas. É um jeito de viver a vida, ou não fosse aqui o lugar do melhor carnaval do mundo.
Mesmo assim, não me parece respeitoso pessoas entrarem depois da peça começar, com celulares acesos para verem os degraus das escadas, enquanto a atriz fala. Nem tão pouco ficarem durante a peça “usando” seu celular para passar o tempo. Muito menos sair antes do fim da peça rindo e comentando.
Cadeiras com fotos e cartas. Uma atriz e sua mochila. Uma peça simples, com cenário minimalista. Ritmo muito lento. Muitos silêncios. Pouca ação. Uma peça difícil. A atriz conta episódios da sua vida e da vida de amigos e familiares, com o tema da migração cubana desde 1959 até a atualidade.
A peça te faz dar um mergulho profundo nos acontecimentos inacreditavelmente reais em Cuba. O que se fez com as pessoas, com as famílias, com as amizades, com a vida de seres humanos. O que se fez, o que se faz. De repente, o mundo está todo quase como Cuba. Uns lugares mais suaves, mais discretos. Outros lugares cometendo e falando barbaridades “às claras”. Parece ficção o que se ouve na peça, mas você vai acumulando informações, acumulando o olhar da atriz, seus silêncios. No final, as fotografias que são colocadas e a música escolhida fazem a asfixia final. Eu tive vontade de abraçar a atriz e lamentar por todo o sofrimento que ela viu e que ela passou e pela dor que seu olhar carrega. Tive vontade de chorar, de chorar copiosamente pelo que fazemos uns aos outros. Pela destruição humana e social que acontece com pequenas ações, aparentemente sem importância. Mas tive de me segurar por que as pessoas terminam a peça e seguem a vida sorrindo e você aguenta e vai para casa lamber as suas feridas sem olhares curiosos.
Viver como estrangeiro já não é assim tão paradisíaco como antigamente. Imaginar as pessoas tendo de sair do lugar que amam e onde pertencem, saindo pelo mar, literalmente de qualquer forma, e ainda sentirem que não fazem parte do lugar onde chegam. Não saberem se voltam algum dia. Etc, etc, etc. É iniciar outra vida dentro de você. Quando essa vida tem sucesso, dinheiro e glamour é uma experiência sensacional. Mas a maior parte das vezes é mudar para muito pior. Imaginem ter nascido na Síria, no Ruanda, nos países de Leste, etc? Quantas vezes se morre em vida para se poder viver feliz?
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre a peça
http://www.tca.ba.gov.br/content/departures
https://www.filte.com.br/rebola
Filte – Festival Latino Americano de Teatro da Bahia