Pra quem não viu DEPARTURES, talvez a estranheza tenha sido maior porque as duas peças juntas são como um soco no estômago. Mas sem uma única palavra durante a peça, Mariela Brito, nos arremessa ao encontro do que fazemos para nos sentirmos próximos, pertencentes a algo, nessa loucura consumista onde entramos.
Antigamente – eu tenho 59 anos – tínhamos cadernos de recordações. Nós escrevíamos algo sobre alguém especial e isso lhe era posto no caderno e vice-versa: pessoas diferenciadas pra nós, escreviam no nosso caderno. É uma coisa antiga, hoje em dia as crianças nem pensam que em algum momento aquele alguém pode vir a ser apenas uma lembrança na sua vida, mas antes funcionava muito bem. O fato é que entre a lembrança na nossa memória e a lembrança- presente, havia uma conexão entre pessoas porque elas eram agentes dessa conexão, que agora virou só “presente”. Você vai lá no shopping e está cheio deles.
Mas onde reside o nosso desejo de compartilhar momentos? Em arrumar malas cada vez mais pesadas de “preciso de você”, “me ajude com isso”, “tenho saudades”? Às proibições de nosso mundo já tão cheio de “não pode, não deve, não fica bem, o que os outros vão pensar”, se somam apartheids diversos, separações sociais, raciais, de gênero, religiosas, ideológicas. Muros, muros, muros. Olhando Mariela, muitas vezes me vi andando em corredores, oprimida pelas distrações que existem neles para que não vejamos, não percebamos que estamos sumariamente presos.
Há um espacinho em cada mala para a nossa felicidade? Se as malas acabassem, o que traríamos de nós, da nossa experiência para as pessoas?
Tudo isso aconteceu sem que Mariela desse uma única palavra. Sem que nos olhasse nos olhos uma única vez, ocupada que estava arrumando espaço nas malas para mais uma lembrança, uma encomenda que não se pode esquecer. O que estamos fazendo de nós? Um IPad é uma declaração de amor maior do que um coco? Já levamos cocos na mala porque não há uma doçura tão grande do que água de coco baiana... Tudo é tão óbvio? Estamos ficando tão óbvios?
Vendo a peça, ontem, pra mim muito triste e solitária e para outras pessoas da plateia engraçada e pueril, percebi que fazer as malas de pijama pode ser interpretado de muitas maneiras... talvez eu a tenha sentido com tamanha solidão porque aprendi a aguardar com ansiedade as mensagens que foram escritas nos meus cadernos de recordação – e que muitas vezes demoraram muito para o meu tempo de criança. Hoje demoram também. Quando vemos pessoas que circulam na nossa vida como nos shoppings de Miami, de Salvador ou de Portugal porque todas as pessoas nos shoppings são exatamente iguais e são apenas isso – passantes circunstanciais na nossa vida, pedindo lembranças, favores, pagando por eles – mas não existindo realmente. Não “escrevendo” no nosso espírito, não sendo para dentro do que há nas nossas malas cheias de solidão.
Uma ousadia imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
“Arrivals” é a segunda parte da peça de teatro “Departures” (Cuba, 2017). Mantêm o tema da migração cubana, desta vez, como o nome indica, abordando o regresso a Cuba. Obra de Ciervo Encantado, de 2017.
Todos de alguma forma já vivemos a partida e a chegada, a ida e a volta. Muito vivem essa dualidade a vida inteira. E esses se identificam nessa peça, nas duas peças. E essas pessoas devem ver estas peças, se elas passarem pela sua cidade. A dor de partir, de se separar do mundo que conhece, o medo do desconhecido, deixar sonhos, ambições. Misturado com isso, a vontade de ser capaz, a curiosidade de um mundo novo, poder ver e fazer o que nunca foi possível.
Voltar. E, ao voltar, como se volta? Onde está a pessoa que existia dentro de nós quando vivíamos no nosso país? Estamos melhores ou piores? Certamente mais velhos. Como vamos encontrar o mundo que deixamos? O mundo onde deixamos de poder fazer parte. É como abrir uma caixa de pandora. Ao mesmo tempo é uma alegria, uma felicidade, poder voltar onde se pertence, onde se foi feliz, onde está quem fomos. Onde estão os que amamos, os que realmente sabem de nós. Mas de cada vez que voltamos, não voltamos iguais. E cada vez tem um sabor diferente. Sempre inefável, mesmo que por vezes seja mais triste ou mais alegre.
Aspetos fortes de “Arrivals” são os pedidos que os amigos e conhecidos fazem e ao mesmo tempo a vontade de levar aquele mundo diferente na nossa bagagem. Quanto mais amor temos às pessoas para quem vamos voltar, mais coisas queremos levar. Na verdade, como queríamos que elas estivessem junto de nós, queremos levar todas as coisas, tentando diminuir o espaço vazio da saudade e do que se perde.
O mundo económico nos viciou, nos tornou consumistas e quem vive em lugares onde pouco existe, deseja tudo o que existe no mundo das coisas. Por que nos ensinaram que essas coisas são maravilhosas e quem as tem é melhor. Tudo que vemos estar muito errado num momento em que o lixo virou um problema mundial que a partir de 2030 se torna irreversível. Mudar de celular/telemóvel, de carro, de móveis de casa, de roupa, etc, constantemente virou um problema. Nós já nem reparamos. A saudade, a perda, a dor, se vê nas listas de coisas que as pessoas pedem. Ali você vê o sofrimento das pessoas, por que elas pedem coisas, coisas, coisas, por que não podem ter-te, não podem ter a vida que tinham nem a que desejam. Isso é difícil. Por que faltará sempre levar algo.
Fazer a mala. Uma viagem interior. Momento pleno de tomadas de decisão. Muito mais difícil do que muitas reuniões de trabalho.
A peça termina com um poema avassalador. Tocante e lindo. Fala deste coração despedaçado que têm as pessoas que se dividem Uma pena que não tenha a referencia de quem o escreveu.
Mais uma vez os risos, os comentários, o desconforto baiano em peças que falam da vida e do que ela tem de difícil. Julgo que o mundo está num momento importante. Julgo que precisamos nos olhar e avaliar o que fazemos, o que compramos, o que decidimos e entender e decidir se isso nos faz falta. E o que é fazer falta, precisar? A Bahia é festa e economicamente isso é fantástico. Mas o futuro parece preocupante quando o nosso olhar pousa na educação. As mudanças estruturais de educação são urgentes, para que ainda haja retorno.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre a peça
http://www.tca.ba.gov.br/content/departures
https://www.filte.com.br/prologoprimeiro
Filte – Festival Latino Americano de Teatro da Bahia