Minha parte mais carioca mora na absoluta intimidade com as palavras, nos textos de Nelson Rodrigues. Nada de intimidade acadêmica porque ele nem parecia pensar nisso – é mais uma intimidade doméstica, cultural, que entende “é batata” com as 300 mil entonações possíveis que ela pode ter (e tinha) na vida cotidiana do Rio de antes, de ontem.
Essa é a primeira falta que senti na peça A Última Virgem: a de intimidade com a forma de dizer as expressões do texto. Há um sentido urbano idiomático muito forte na escrita de Nelson. Vou dar um exemplo real. Ó paí, ó quer dizer: Olhe para isso, olhe. No Rio, pelo fato de que a cultura idiomática é diferente, ó paí, ó virou: Ó pai, ó. E aí o filme nunca mais combinou com o título. Mas só faltava um acento! Mas só trocou a vírgula de lugar! É. Mas virou outro texto.
A segunda falta é a de ritmo de fala, não porque esteja lento, mas porque a articulação está tão rápida que altera a compreensividade de algumas atrizes, sobretudo. A terceira falta talvez seja a mais fácil de sanar. Muitos atores não estão colocando na equação da fala teatral o pedacinho chamado propagação do som da voz. Se usarem a plateia como objetivo, tudo ficará bem mais fácil. E não precisa dar nenhum grito nessa busca.
O cenário é estonteante. Adorei. Adoro a simplicidade e quando uma montagem tem a visão exata do jogo entre as sombras e a luz dentro do espaço, todos conjugados, é genial. A trilha é forte, incrível. Celso acertou em cheio.
Há ali grandes construções que vão amadurecer e florescer e cenas que precisarão de um pouco mais de foco porque no mundo onde Nelson habita não há lugar para falas sem intenção. Mas o espetáculo aponta tão fortemente para os tempos onde as aparências se tornam tudo que saem da metade do século passado e pulam na nossa frente, no nosso tempo – estranho tempo, esse em que vivemos...
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
Teatro Vila Velha em Salvador está num espaço quase terapêutico. Você entra no espaço da Polícia Militar, para dentro de uma muralha que já fisicamente te dá uma sensação de proteção. O espaço é imenso, bonito e calmo. O próprio Teatro Vila Velha é um espaço escola, espetáculo, teatro e outras artes. Muito bem organizado, com muitas pessoas envolvidas e focadas. Você encontra sempre um par de olhos tentando perceber se você precisa de alguma ajuda, informação ou acolhimento. Isso mostra o prazer com que as pessoas estão ali, com cara de quem está na sua segunda casa. Ou primeira.
Entramos e sentamos. O cenário logo nos chamou a atenção. Simples mas muito bonito. Tirei uma foto para acompanhar a crítica como devem ter visto. A música ambiente também muito legal. Adorei. Música de muitos anos mas nada antiga. Belíssima.
Nelson Rodrigues. Nossa, como amo cada vez mais as suas obras. Pensar que quando era mais nova detestava Nelson Rodrigues, Dostoievski, Francis Bacon, Paula Rego e muitos mais visionários que nos expõem as feridas, as tripas para fora sem dó nem piedade. Hoje que os entendo, lhes agradeço profundamente.
Esta peça, baseada em “Os sete gatinhos”, é extraordinária na forma como mostra as “misérias” que alguns necessitam ou escolhem para “salvar” os “escolhidos” das famílias. Menos punhal, mais mentira, menos hipocrisia, mais elegância, todas as famílias fazem e permitem que se façam coisas inacreditáveis para salvar os eleitos. E, são os eleitos que um dia se entregam porque não conseguem esconder para sempre na capa de perfeição que lhes deram para vestir, o seu verdadeiro e pouco nobre “eu”. E todos os justos e nobres escorregam ladeira abaixo quando os desejos obscuros os fazem sair do seu quadrado protetor de exemplaridade. Obrigada Nelson Rodrigues. Obrigada Celso Júnior, diretor da peça e obrigada ao elenco.
Percebo que a logística e mobilidade do cenário exige alguns cuidados, sob pena de atrapalhar a cena seguinte. A roupa que se despe e se atira para fora de cena, o tênis que se descalça para que fique num determinado lugar, as cadeiras que se buscam e se levam de cena, tudo isso me tirou um pouco o foco da peça por que aparece uma intencionalidade de organização e não de envolvimento na ação. Um pequeno detalhe que quando estiver mais fluída a ação com certeza desaparecerá. Também notei algumas questões com o volume da voz do elenco. Momentos em que se ouvia muito baixo, momentos bons e momentos de volume extremamente alto e áspero. Alguns atores cuidaram o ângulo de saída do som, em relação ao público. Alguns ficaram sem som para o público em algumas escolhas de ângulo de saída de som. Alguns, optaram por elevar demasiado o volume das falas, desgastaram-se imenso e isso fez passar menos emoção. Mas deram ao público a possibilidade de mergulhar em Nelson Rodrigues, com entrega, trabalho e talento. Obrigada.
O Bug Latino agradece a gentileza de Fernanda Paquelet pela cortesia dos ingressos. Muito gratas.
Ana Santos, professora, jornalista