Mais uma vez eu tenho que apontar que, ao contrário de um absoluto idiota que vi hoje no Facebook, falando contra a Lei que ampara os realizadores de cultura do Brasil, cultura é a alma humana. É o que nos possibilita aprender pela imitação e não apenas pela dor. E quando um absoluto idiota fala contra o cuidado com a cultura de um país, demonstra que entender certo e errado como esquerda e direita, atesta exatamente o que ele é – um absoluto e notável idiota.
UM BONDE CHAMADO DESEJO é um clássico de Tennessee Williams. Uma peça dificílima porque nos coloca em frente ao que podemos vir a ser quando tudo se atrapalha na nossa cabeça e as informações misturam-se às futilidades. Quando o que desejamos para a nossa vida colide com a própria vida. A dor. A fuga da dor. A loucura. O pior de nós, diante de um ambiente que, com peças separadas, não seria tão criminosamente hostil. Mas que com aquelas pessoas, naquela situação, cria o caos humano absoluto, a tragédia.
Poder ver uma montagem com atores famosos que só temos oportunidade de ver no cinema e na TV é a única coisa boa que o COVID fez até agora. Ele continua nos aproximando da arte e da cultura nacional e internacional – ao contrário do que o supremo idiota acredita. Ele sabe o que é teatro? Já foi ver uma grande montagem? Teve esse privilégio? Mas como tem boca, fala. Sem nada saber ofende, escracha, desmerece. Como os idiotas.
Com a direção de Benedict Andrews, a montagem de UM BONDE CHAMADO DESEJO, é primorosa. Mesmo no início, na chegada de Gillian Anderson – exato, a do Arquivo X – a gente fica com a ideia de que ela é meio over e que ancorou no seu estrelato pra fazer a peça. Engano total. A atuação dela, da chegada à cena, até o fim, é perfeita. No curso da peça você vai percebendo um exagero que evolui para pequenas mentiras, leves desequilíbrios, caos, loucura. Ben Foster – é ele mesmo! – com a crueldade esperada da frustração – temos aulas regulares dessa crueldade no Brasil, nos dias de hoje – destruindo o que não pode ter, “colocando o mundo do jeitinho que ele acha”. E como ele mesmo diz na peça – HA! Como o Brasil vai ver, é impossível. É impossível uma pandemia virar resfriado. HA. É impossível aceitar que alguém que nunca passou perto de uma cadeira, no curso de medicina, “prescreva o remédio que “ele acha melhor para as pessoas do Brasil” – HA. Caos, cadáveres empilhados – HA.
A omissão não poderia deixar de fazer parte do texto, como vocês também verão, se acompanharem com pressa o link que vamos deixar, com Vanessa Kirby – ok, a de Missão Impossível 7 e Crown – que num dado momento, como a irmã é meio “desconjuntada da cabeça” mesmo, permite tudo o que vai lhe acontecer. Coisas que começam com desconfianças e acabam do jeito que vão acabar – pra não dar spoiler demais.
Não deixem de ver o trabalho de grandes atores, os mundialmente conhecidos, agora na arte do fazer teatral. Nada contra a comédia e o besteirol, mas o teatro faz parte da nossa capacidade de viver a dor, de experencia-la, através da mímesis – a nossa capacidade de aprender através da imitação. E o Brasil precisa tanto disso agora. Ver a experiência da dor na pele dos atores, ao invés da nossa porque na nossa as pessoas morrem de verdade, sofrem de verdade, adoecem de verdade e não há respiradores para todos de verdade, não há médicos para todos, de verdade. Infelizmente.
Fora isso: Microfones incrivelmente postos, amplificação perfeita, cenários (bem, está ficando cansativo eu elogiar os cenários europeus), luz, a forma como o diretor limpa a cena, a interpretação, o mergulho, o jogo cênico – o que posso dizer para que vocês separem a noite de hoje para assistir?
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
Obra literária que consagrou Tennessee Williams a nível internacional, “A Streetcar Named Desire” (1947), foi levada ao cinema e ao teatro pelo mundo todo. Traduzida como “Um Elétrico Chamado Desejo” ou “Um Bonde Chamado Desejo”, entre outras possibilidades, tem, como todas as suas obras, muito do que o escritor viveu.
Uma obra importantíssima, mas duríssima de assistir. O conceito de verdade, as relações humanas, amorosas, familiares. A degradação humana visível e a degradação humana invisível.
O Covid19, desta vez, permitiu a possibilidade de assistir em Salvador – Bahia, a uma peça realizada em Londres, com atores de cinema e TV, de fama mundial. Um privilégio, uma oportunidade que não devem perder.
Filmada magistralmente, permite que possamos assistir melhor do que no teatro, em termos de planos. Uma filmagem e uma edição realmente de muita qualidade. Outro mundo. Claro que teatro ao vivo é insubstituível, mas poder estar em Londres, sem estar, poder assistir a uma peça, sem pagar, com atores deste nível, é uma surpresa maravilhosa.
Além disso, com um palco giratório, permite que todos na plateia possam ter todas as perspectivas.
Se, no início, achei que os atores gritavam um pouco, mesmo “microfonados”, à medida que a peça avança, Blanche vai diminuindo sua altivez e seu volume na voz. Ficando mais intensa, mais perturbadora, mais sofrida.
Amei as mudanças de cenário, de figurino, atores que viram assistentes que limpam e cuidam do cenário. Amei, amei. Cru, sem nada a esconder. A iluminação, as músicas escolhidas, o avanço na “história”. Tudo tão aparentemente simples, tão funcional, tão belo. Tem algumas cenas com extrema ação, muito difíceis de fazer, de ensaiar. Amei.
Discretamente, patrocínios de alto valor aparecem nas cenas. Alguns nomes de bebidas bem famosas.
Fiquei muito feliz de poder assistir a atores de fama mundial, a uma produção brutal, a uma direção de teatro e de filmagem de alto nível. Como se estivesse em Londres. Faltou sair da peça para caminhar um pouco e tomar um vinho conversando sobre o espetáculo.
O prazo de liberação da peça termina 5ª feira. Se apresse e aproveite. É um luxo...
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre a peça “A Streetcar Named Desire”
Direção de Benedict Andrews, foi filmada ao vivo no palco do London’s Young Vic theatre pelo National Theatre Live, em 2014.
Elenco: Gillian Anderson (The X-Files, The Fall, Sex Education) como Blanche DuBois, com Ben Foster (Lone Survivor, Kill Your Darlings) como Stanley e Vanessa Kirby (The Crown, Mission Impossible 7) como Stella.
Sinopse: Blanche vai visitar a irmã grávida em Nova Orleans em busca de um lugar para morar, já que, após seduzir um jovem de 17 anos, ela foi expulsa da sua cidade natal. Sua chegada afeta fortemente a vida da irmã, a do cunhado e a sua também.
Pode ser vista online gratuitamente até dia 28 de maio de 2020.
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