Que texto! Como é possível que as pessoas aqui em Salvador insistam na ideia de que aqui não se consome drama? Só pode ser porque não se faz drama bom! Bem! São muitos preconceitos reunidos: Atores portugueses (tsc,tsc,tsc – o que eles teriam a dar? – tudo!) Uma direção sólida, numa interpretação mais sólida ainda. Cenário e luz, nem vou falar mais nada porque é tudo tão leve e, ao mesmo tempo, tão moderno, usa tão bem todos os espaços – até os aéreos – que o primeiro impacto é você perceber que se precisa de novos pontos de vista e de palcos menos cheios de elementos, porém mais chiques. Alguma coisa diferentemente boa tinha que resultar do Covid-10 – ainda não sei se as pessoas vão se depurar ou não, ainda não sei se o consumismo, o vício em comprar vai ser posto em xeque – mas o teatro de Lisboa ficou aqui, ao alcance do meu computador e isso é perfeito!
Tiago Guedes é o diretor, num texto muito bem articulado de Dennis Kelly. Assistir, em meio à esta pandemia, a descida mais vertiginosa ao nosso inferno humano como na peça, é um pouco entender porque existe COVID, porque Xangô ganhou um ano de justiçamento absoluto, onde a cara de todos nós, enquanto semeadores de caos, está diante da balança, do machado de dois fios. Diante de Xangô.
O texto é torpe. Mas, o próprio Brasil está diante dele, agora. Os atores, fustigam a plateia o tempo inteiro: “já começaram a sentir nojo?” Quando começaremos a sentir nojo do que vemos, no Brasil? Empresários, o próprio presidente – chega de ficar em casa! E mortos e mortos empilhados. São milhares e já são invisíveis.
O poder faz mesmo parte de uma seita sem roupas específicas, mas nela você aprende a ser capaz de parar o tempo e prever o futuro? E ficar diante dessa afirmativa, na época de viver o Covid – sem respostas de vida ou de morte, sem conhecimento do que pode acontecer, se você adoecer e o sistema já estiver colapsado, quem vai te matar, como você pode morrer... e diante de você o olhar dos escolhidos que podem tudo e que te desprezam porque o povo não existe. São só números...
Um elenco que domina as palavras – cada intenção, cada momento, cada pausa está ali por algum motivo e você entende cada um deles. Bem microfonada, bem filmada. Não há tempo para piadas – estamos vivendo uma emergência humana, afinal.
Não consegui me mexer na cadeira. Que importa que vi pelo computador? Nem pisquei.
Imperdível. Peguem o link, usem o link, vejam a peça!
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
A informação geral sobre a peça é bastante clara. Lancinante. Necessária de ser vista e confrontada e conversada. Tentem ver a peça. Interessante a divisão entre o que somos e falamos e o que acham e falam de nós. Interessante o confronto com a nossa infância e o que somos no futuro, como adultos. Duro ver como as circunstâncias e a forma como enfrentamos as circunstâncias, nos transformam no que somos para os outros. E para nós. Bondade ou covardia/cobardia. A sobrevivência alimentar, financeira, emocional, seja o que for, é um enorme “divisor de águas”. Nesses momentos, fazemos escolhas que nos moldam para sempre. Uns mais nobres do que os outros. Infelizmente, cada vez mais pessoas, se moldam menos nobres. E é impossível não recordar provérbios como: “quem mente uma vez mente sempre”; “quem mente no pouco mente no muito”; “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”; “há quem se faça rico, não tendo coisa nenhuma, e quem se faça pobre, tendo grande riqueza”.... Uma peça de teatro que é um soco no estômago necessário para quem não quer se tornar insensível.
Bruno Nogueira, ator português conhecido pelo humor, demonstra um lado talentoso de ator de drama. O cenário, o roteiro, o figurino são simplistas mas com uma identidade fortíssima. O mesmo podemos falar sobre a iluminação. Envolvente. Marca os “atos” da peça com as mudanças de cenário, iluminação, em movimento. Novamente, os atores ajudam na construção e desconstrução do cenário, de uma forma fluída. Novamente o importante é o ator, são os atores.
O Covid19 libertou estes grandes teatros portugueses, europeus, mundiais, das amarras de guardar as obras, de apenas “mostrar” a quem vai ao seu espaço material, quem compra bilhete, quem senta na cadeira da sala de teatro. Parece que ultrapassamos algumas fases da vida que eram impensáveis. Poder assistir a peças de teatro de Lisboa, do Porto, de Londres, sentada no sofá de casa, esteja onde você estiver. Para já gratuito, e que bom para nós, mas que bom que será se tudo permanecer possível, depois do Covid19, mesmo que seja a pagar. Claro!
Ana Santos, professora, jornalista
Link da Peça
https://vimeo.com/showcase/6879385/video/357950166
Informações Gerais sobre a peça
encenação Tiago Guedes
texto original Dennis Kelly
com António Fonseca, Beatriz Maia, Bruno Nogueira, Inês Rosado, José Neves, Luís Araújo, Rita Cabaço
Depois de Órfãos, o realizador e encenador aborda agora A matança ritual de Gorge Mastromas, texto de 2013 sobre a banalidade do mal na pessoa do homem que a peça de Kelly escrutina em retrospetiva: "A existência não é aquilo que até este momento pensaste que era. Não é honesta, não é gentil, não é justa. A maior parte do mundo não faz ideia disso, acreditam em Deus, ou no paizinho ou em Marx ou na mão invisível do mercado ou em honestidade ou bondade. Atravessam a vida, de olhos fechados, a levar porrada e ser lixados. Ele é assim. Tu és assim. Mas uma ínfima parte de nós, chamemo-nos a resistência, sabemos a verdadeira natureza da vida. É-nos dado o mundo. Somos poderosos e ricos e temos tudo, porque faremos tudo o que for preciso.”
Teatro D. Maria II – Lisboa