Eu poderia começar dizendo que a peça deveria ser obrigatória numa terra como a do Salvador da Bahia, onde 80% da população é de negros e miscigenados. Mas não – a peça, uma montagem inglesa, deveria ser vista no mundo inteiro. E depois discutida, percebida por cada pessoa. É preciso finalmente darmos esse passo.
A peça deixa um gosto terrível na boca de todos e fala verdades sem muita perda de tempo com metáforas – nada de romantismo. O racismo é mesmo uma mera questão de poder e de dinheiro, é insuportável ver que os negros do mundo tentam desesperadamente serem aceitos como iguais, que o poder coloca uns contra os outros para dominar/lucrar, que qualquer raça pode ser essa minoria pobre, não se enganem – hoje são os negros pelo peso da história da escravidão, mas refugiados libaneses, jordanianos, venezuelanos, indígenas em geral estão na fila dos invisíveis – e só nós podemos mudar isso com paciência e perseverança porque “300 anos de história não se apagam com um whisky” – fala da peça. Há mágoas que precisam de muito tempo para cicatrizar e esta é uma delas, não se enganem.
O passo que olha de frente, de igual para igual precisa ser dado e o Bug nunca se cansa de discutir e reapresentar o assunto do racismo e do preconceito porque, para além de mudarmos todos de atitude, termos que tentar tudo de perspectivas diferentes. Muitas vezes. Inúmeras, incontáveis. E não tiro dessa perspectiva até mesmo os negros – é cansativo ver o que a polícia faz nas blitzen (controle policial nas ruas). Cansativo, deplorável e desnecessário. Obtuso, estúpido e inválido.
A peça depõe, mostra, interpõe. A nós cabe sentir a dor e a vergonha e tomar atitudes concretas. Não permitir mais que a polícia, numa blitz, sem motivo aparente, espanque pessoas é uma atitude concreta. Saber o nome de todas as pessoas ao seu redor é uma atitude concreta. Seu porteiro tem nome, o garçom tem nome, o gari tem nome, o carteiro tem nome. As pessoas se ressentem em serem chamadas por “psiu, aí, etc”. Um detalhe é um passo. Qual é o seu?
Falar da funcionalidade do cenário, da luz, do corpo de cada ator, do andar totalmente assimétrico de uma figura metafórica/simbólica, que passa o tempo inteiro cortando a cena, a técnica espetacular de gerar movimento, troca de cenários, passagem de tempo – tudo isso com o movimento do mesmo cenário. A forma como a voz dos atores parece perder o controle, estar por um fio, o excesso de projeção que parece descontrole, tudo é cênico, perfeito, espetacular – tudo para nos remeter a um desespero controlado, ao limite do engolir em seco e seguir em frente.
Em muitos sentidos, imperdível. Na Bahia, obrigatória.
Uma atitude concreta, um passo. Qual é o seu?
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema, TV
Outro continente, outro país já nos mostra outros pontos de vista. Mas, além disso, ser um dos maiores centros da cultura no mundo, como Londres é uma enorme aprendizagem sobre teatro, neste caso. O cenário é lindo, de aparente simplicidade, que circula construindo várias cenas, numa mesma construção cênica. Quase um personagem da peça de tão bonito e influente. Uma plataforma “giratória” que fez lembrar o mesmo sistema do cenário do musical “A Cor Púrpura”, que o Bug Latino teve a honra de poder assistir. Um musical justamente premiado.
A luz da peça é impressionante. De vez em quando, bela como África, de vez em quando triste como algumas realidades e passados, umas vezes densa como a vida, outras vezes assustadora como alguns destinos.
É uma peça difícil para quem sempre teve uma vida equilibrada e respeitada, para quem é branco, para quem se importa. Muitos momentos em que os diálogos são “tapas na cara”. A peça é um “tapa na cara”. Envergonha quem se preocupa, quem é ponderado, quem tem bom senso, quem é justo, que é ético, porque apesar disso nada se muda. Tudo permanece errado, injusto, marcado. São colocados únicos e inovadores pontos de vista sobre a desigualdade étnica e de cor de pele. Porque são ditos pela primeira vez publicamente e em diálogos. Colocados de uma forma e com um “timing”, lancinantes.
O ator Tunji Kasim, que faz o personagem Eric, é um primor corporal. Bonito, atlético, sim. Mas o primor está na sua expressão corporal. Corpo que fala constantemente e com uma especificidade de linguagem que entendemos tudo o que “fala”, quando fala e quando não fala. Divino.
Os cânticos...nossa...os cânticos...belos, belos... Os cânticos, as músicas, a circulação das mulheres que cantam em “Xhosa”, a circulação do fogo, a circulação da “dor, da morte, do medo, ...”, tudo no lugar, tudo com sentido, tudo no seu tempo, dominando o tempo.
É muito importante ver esta peça. Muito importante. Se não domina a língua inglesa, o vídeo tem tradução para português. Não deixe de ver, por favor.
Ana Santos, professora, jornalista
Link da peça completa (até dia 9 de julho de 2020)
https://www.youtube.com/watch?v=aTML9zh4sLc
Peça “Les Blancs” – filmada em 2016 pelo National Theatre
De Lorraine Hansberry, adaptado por Robert Nemiroff e texto restaurado e dirigido por Joi Gresham
Dedicada à memória de
NOFENISHALA MVOTYO
Elenco – Sheila Atim, Gary Beadle, Sidney Cole, Elliot Cowan, James Fleet, Clive Francis, Tunji Kasim, Anna Madeley, Roger Jean Nsengiyumva, Siân Phillips, Danny Sapani, Xhanti Mbonzongwana
Sinopse – Para maiores de 15 anos. É uma peça acerca de imperialismo, racismo e colonialismo.
Acabo de assistir a peça "The White's .
Ainda estou sob a emoção que ela me provocou ...
Vi-a no meu telemóvel e em inglês mas vi bem e o que não abrangia por vezes da língua deduzia ...
A peça é de 2015 e representa bem o domínio dos brancos que ainda hoje , infelizmente, ainda está presente em muitos países ...
O colonialismo é muito bem tratado e os artistas são muito bons sobretudo os 5 principais ...
O servilismo dos negros e o abuso das autoridades é também muito bem representado ...
A senhora cega e o preto que vem da América são fantásticos .
O cenário é minimalista mas está óptimo e a cerimônia à volta do morto é muito emocionante ...
A revolta e a reacção do irmão que chega são perfeitas ...
E o coro inicial assim como os cânticos dos negros são lindíssimos e com belas vozes ...
Nos nossos dias ainda há muito racismo pelos negros. No caso da Bahia, o racismo existe mas está longe de ser minoritário ...
Há casos de violências ,todos os dias , e a pandemia que nos assola não melhorou nada ...
O nosso Mundo tem de mudar , vamos acreditar nisso ...
Comentário de Maria Lúcia Levert