Os estudos acadêmicos, o comportamento neutro, absolutamente neutro, afavelmente neutro, dolorosamente neutro dos ingleses consegue apagar o furor, o fogo, a energia de se ver e de ver o mundo através de uma ótica atravessada por uma história africana?
Neutraliza-se preconceitos? Como afinal cada um de nós passa por eles para apenas sermos quem somos, sem comparações? Fulana, negra do cabelo bom, Sicrano, branco do cabelo ruim – o que é a qualidade ruim ou bom para cabelo? Exatamente.
O que somos, exatamente? Porque, sem este saber exato, qual o fundamento do preconceito? Ah, ok, somos diferentes e a diferença é a marca do preconceito. Mas - quem é igual?
Black River mergulha num universo indistinto que tentamos ingenuamente distinguir – a diferença. Num mundo que distingue cada vez mais diferenças, mas não assume uma lógica de igualdades, a peça vem mesmo a calhar. E ver Patrick Campbell para além do ponto de vista de meu colega de classe, no mestrado, foi um presente, uma honra. Uma voz pura, dona de muitos sotaques, acentos melódicos e prosódias, Patrick conta histórias que detém a estranheza de quem somos e nossos pequenos e não percebidos preconceitos cotidianos, colocando-se no lugar de quem viu de onde veio e aponta com clareza – somos quem somos e somos misturados.
No Brasil então, é um debate cansado, à medida em que ninguém pode se sentir fundamentado em uma única raça para falar e, assumindo nossa mestiçagem, para quê falar? Com que moral, que raciocínio? Um debate que esgota as nossas reservas de lucidez, sendo estúpido – e por isso mesmo cada vez mais necessário.
Há um ponto de partida para a humanidade e ele é miscigenado, caro leitor. Em sua performance, Patrick, branco, olhos azuis, inglês de sentimentos neutros e cabelos encaracolados, aponta seu avô negro, seus tios mestiços e ele – branco, do cabelo “nem tão bom assim”. E ao fazer isso a si mesmo, ao designar-se mestiço, levanta a questão do racismo com determinação e excelente interpretação, com domínio da voz e todos os seus meneios.
Uma pena tê-lo visto tão pouco tempo e usufruído de seu trabalho apenas nesta apresentação.
Espetáculo imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
Peça falada em inglês e português do Brasil. Vários sotaques, cantos, cânticos e danças africanas, caribenhas. Uma “mescla” de culturas, de línguas, de personagens. Apenas um ator. Patrick Campbell criou uma peça totalmente sua, que inclusive, inclui a sua história. Muito interessante e culturalmente rica.
Pouco cenário, pouco figurino, pouca iluminação. Uma peça de produção simples. Eu gosto e admiro atores que fazem peças assim.
Julgo que esta forma de teatro, de contador de histórias, de contador da sua própria história é muito importante no momento em que vivemos. Partilhar experiências, partilhar sofrimentos, partilhar a forma de lidar com tudo o que dói ou nos faz feliz pode nos salvar. Nunca nos salvará atacar ou impedir o sucesso do outro, diminuir o que os outros fazem de bem. O Brasil está em ebulição e prestes a explodir por que quase todas as pessoas estão a preferir aumentar os problemas e a preferir destruir para apenas vencer? Vencer o quê? As pessoas têm de se entender. Ou no final de todas as tentativas falhadas, se respeitar e viver cada um a sua vida sem atrapalhar a vida dos outros.
O ator conta a sua história, sob o ponto de vista da diversidade de cores de pele, cultura e vida das pessoas da sua família. Uma mistura de escravos, donos de fazendas, etc, etc. Pontos de vista opostos, vidas abonadas e vidas de sofrimento numa mesma família.
Injustiças, tragédias, marcas que ficam para sempre nos que vêm depois. O ator de alguma forma tenta mostrar seu sofrimento, sua angústia e parece querer mostrar a todos nós que não adianta ficar preso a mágoas, por maior sofrimento que se tenha passado. Gostei da forma original como confronta a ciência, a investigação, a pesquisa, a cultura, as raízes, a terra.
Uma peça que seria bem recebida em Portugal.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre a peça
https://www.filte.com.br/copia-o-outro-lado-de-todas-as-cois
Filte – Festival Latino Americano de Teatro da Bahia