Há décadas atrás, ainda no Rio, esbarrei com Adriana Calcanhoto no Teatro Rival – e ela tinha o casaco militar mais bonito que eu já tinha visto. Ontem, pela primeira vez a vi sem pensar nesse casaco. E não pensei em mais nada senão no quanto esta mulher amadureceu nessas décadas que passaram.
Falando como uma pessoa que trabalha com vozes, que fez disso sua profissão – sim, ela tem um tremor de passarinho na voz, uma fragilidade que é como uma assinatura, um pedido – algo que faz com que continuemos procurando a origem da fragilidade. Mas essa fragilidade fala de tudo, expõe tudo e para isso é preciso coragem – a coragem das grandes aves, que não têm medo de mirarem a presa e se deixarem despencar em queda livre, em busca, em modo caça.
Nunca a senti tão forte, ali, sendo apenas e genuinamente brasileira. E nunca me senti tão cúmplice de Adriana Calcanhoto no que temos em comum logo de cara – a nossa brasilidade. Na quantidade de palavrões que saem de nosso olhos todos os dias, a cada percepção de coisas mal feitas e mal acabadas nas quais tropeçamos – e num país do tamanho do nosso, há muitos lugares onde tropeçar. Nós sabemos, vivemos, acordamos e dormimos com a cruz às costas – somos brasileiros. BRASILEIROS.
Pindorama abandonada come e dá pra todo mundo. Talvez a próxima música a ser regravada deva ser Geni, de Chico.
Mas que orgulho ao poder admitir que a voz frágil, aponta a mulher que saiu do sul, cariocou, casou, enviuvou, estudou e voltou pra casa – porque sem dúvida, o Brasil é a sua casa. E sofreu e sangrou com a dignidade que vemos nas mulheres que aprendem a sangrar quando menstruam. A voz frágil, a gentileza na ponta da língua, cantando uma música a pedido de um fã, a percepção das semelhanças nas línguas portuguesas que falamos aqui e em Portugal, mas a consciência de que parecido não é igual - tudo isso dá a dimensão de uma poeta que tem coragem de cantar outros poetas com a mesma dignidade com que canta as suas. E é difícil não pestanejar, não tremer diante de Fernando Pessoa e Gregório de Matos – mas o carcará em pele de passarinho pequeno só mostra a fragilidade na voz.
Clássico, lindo, forte e sobretudo brasileiro, mestiço e selvagem. E frágil. A força, eu vi no tremor da voz.
Quem não foi, chore. Perdeu.
Ana Ribeiro
Direção de teatro, cinema e TV
Portugal pode e deve se sentir muito orgulhoso por ter podido usufruir da presença de Adriana Calcanhoto por dois anos. As graduações, mestrados e doutoramentos académicos podem aproveitar para se rever porque talvez Adriana merecesse um título académico que ainda não existe, pelo que tem dentro de si, pelo que procura, pelo que mergulha, pelo que enfrenta, pelo que decide, pelo que cria, deseja, faz. Portugal ama Adriana Calcanhoto! Talvez porque ela mostra possibilidades, passos que só um poeta dá.
Depois da primeira canção, que dá nome à tour, ao show de início de carreira e que fala do seu percurso, Adriana fala um pouco do tempo que passou em Portugal. “Eles dizem que nós falamos brasileiro”. Tem toda a razão! Sempre fizemos isso. Não sei por que razão. Sei que falávamos sem pensar nas consequências, como falávamos de falar em americano, ou em irlandês, ou escocês. Nos últimos anos existe uma tentativa de corrigir esse erro que é deselegante com um povo que sempre respeitou tanto a língua portuguesa e a sua poesia. Peço desculpa pelos portugueses por essa deselegância, apesar de ser cometida sem qualquer intenção. Talvez estas situações também sejam boas para se falar nestes equívocos e mal-entendidos que só atrapalham dois povos que se amam. Nós no BUG Latino estamos tentando fazer uma parte também. Você também pode fazer uma parte.
Passeiam poesias de Emily Dickinson, Gregório de Matos, suas, etc, etc, etc. Palavras e frases pouco comuns são cantadas, repetidas, pois precisam ser ditas e ouvidas. Nota-se uma influência lusitana mais forte e o mesmo olho clínico de apontar o que todos veem, mas não falam.
A partir de “Esquadros” sonhei... As canções de Adriana Calcanhoto foram sempre uma companhia muito frequente na minha vida, quando vivia em Portugal. Há mais de 20 anos que é conhecida por nós e muito amada. Nos reconhecemos muito nas suas letras, poesias. Entre 1998 e 2000, fiz várias viagens pelo mundo em trabalho, Rio de Janeiro incluído. Ouvir Adriana Calcanhoto, caminhando ou em viagem de carro pelo Rio de Janeiro, passando pelo posto 9 e outros lugares, foi uma benção. Tudo está ali. Tudo está no nosso coração. Ouvir “esquadros” durante viagens longas e longínquas, foi como se meu cérebro estivesse conectado com quem escreveu, porque você sente tudo isso – eu também andava pelo mundo divertindo gente e chorando ao telefone, também prestava atenção a tudo, etc. Me fez muita companhia. Muitas vezes foi a única companhia. Acho que desde essa época e desde as canções de Adriana Calcanhoto a minha vida nunca mais ficou igual. Não devo ser a única a sentir isso. Ainda bem!
Dois shows no mesmo dia e uma disponibilidade enorme para partilhar em palco. Interrompe o espetáculo para cantar uma música que não fazia parte, só porque uma pessoa pediu com um grito. Quantos cantores, compositores, poetas, artistas fazem isso? Consagrados?
Acompanhada dos excelentes músicos Bem Gil e Bruno Di Lullo, nos convidou para “Comer Caetano”. Muito saboroso...
Uma mulher de quem se fala e de quem se falará muito. Uma Florbela Espanca dos nossos tempos que ainda tem muito a dizer. Obrigada, Adriana Calcanhoto!
O BUG Latino agradece a cortesia dos ingressos. Muito gratas a Allcance Produções, em particular a André pelo carinho.
Ana Santos – Jornalista e preparadora corporal