Minha primeira experiência com A COR PÚRPURA foi em 1986, no cinema. Não tínhamos uma comunicação nítida sobre questões como o amor de duas mulheres, violência contra gênero, a questão do trabalho e a valorização da mulher – todos sabíamos que havia uma névoa sobre o assunto, mas via-se a névoa, muito mais do que o que ela escondia.
Quando Oprah Winfrey lançou a montagem teatral, em 2015, acompanhei tudo – primeiro porque voz é meu material de trabalho principal, segundo porque amo Oprah e terceiro porque os temas discutidos em A Cor Púrpura já tinham total e completa nitidez social.
Ontem, fui ver a montagem brasileira e saí do teatro sem palavras. Um elenco totalmente negro para a nossa plateia baiana foi um encontro, uma catarse – como partes de um mesmo todo que finalmente haviam conseguido se encontrar e retomar o que estava perdido no tempo. Nenhum trabalho, de nenhum governo teria a capacidade de restaurar de maneira tão rápida nosso amor próprio enquanto cidadãos do mesmo país, coletividade, povo – chamem como quiserem. Ali, na plateia, eu amei mais Genilson Coutinho por ele ter lembrado de convidar o Bug Latino. Tive também a certeza de que os gays do mundo podem mais, se estiverem juntos. Eu poderia falar da montagem, da mobilidade do cenário, da quantidade de treinamento que é necessária pra 18 atores pularem um traveling com tanta naturalidade que nós esquecemos que tem um trilho em cena o tempo todo. Poderia falar da dinâmica do espetáculo que, apesar de parecer longo, passa em um piscar de olhos, poderia falar do tempo mágico do teatro, do poder de educação que tem a arte. Tudo isso está no espetáculo, acreditem. Mas preciso falar do poder de toque da voz humana. Quando a gente fala de aparelho fonador, fala de um sistema que é inespecífico, evolutivo mesmo e que por isso sofre total influência da respiração – e respiração é o que somos. Poder vocal vem de respiração, nota sustentada vem de respiração, correr e cantar sustentando uma verdade cênica, vem de respiração. Que trabalho vocal... talvez um pouco de problema de acústica, mas certamente não do elenco, que calibrava a voz, as notas.
A plateia – nós – se no começo tinha a postura de plateia, estava lá pra assistir alguma coisa, na metade do espetáculo já era parte dele, a parte do elenco que estava atuando onde estavam as poltronas. Então, a atriz cantava e era ovacionada, falava alguma coisa e a plateia respondia, sofria, acompanhava, torcia... num momento de encontro inigualável. Inigualável. Inigualável.
Não foi apenas o trabalho de um elenco excepcional. A Bahia, dentro de sua história na escravatura brasileira, caminha pelas ruas com suas cicatrizes à mostra. O povo brasileiro caminha e as esconde; mas elas insistem em ultrapassar nossas bandagens sociais, principalmente no doloroso colapso de polarização que vivemos. Me deixa totalmente perplexa ouvir “bem feito governador porque incendiaram um ônibus”, ao invés de “como estão as pessoas que foram violentamente retiradas de dentro dele”. Nunca mais eu havia vivido um uníssono racial, social, de energia e foi um impacto pra todos nós. Muita gente emocionada, chorando, muita gente se abraçando no foyer do TCA e conversando entusiasmada que assumiu tal coisa na vida, que o ano tal foi muito difícil. Não foi um espetáculo. Foi um momento. Também não sou capaz de falar por todas as pessoas, mas posso falar do que senti, ali. Os celulares sumiram das mãos e havia pessoas vivendo um momento mágico juntas. Foram tantos aplausos que o elenco bisou um pedacinho da última música – e o TCA virou missa gospel, virou um coletivo humano que vivia o poder da vontade, da união e o poder da aceitação que os coletivos podem ter na mudança de atitudes.
Saí do teatro e passei diversas mensagens pedindo para que todos fossem ver porque temos um Brasil inteiro pra mudar - com mais generosidade e preocupação com um minutinho de conversa além, um minutinho de atenção a mais. Um minutinho de nós pessoas para nós brasileiros. Um minutinho de aceitação das mulheres, das drags, das trans, dos gays, dos negros, dos héteros, dos pobres. Um minutinho.
Meu coração foi tocado. Espero que o de vocês seja também.
Ana Ribeiro, diretora de teatro, cinema e TV
A incrível Alice Walker, que foi capaz de escrever obras como “A Cor Púrpura”, expondo as terríveis loucuras que se “faziam” com as mulheres nas famílias e na sociedade. Regras instituídas sem qualquer respeito pela mulher e aceites por todos como verdade social. A vida parecia ser apenas assim. A vida parece muitas vezes ser apenas assim: triste, dura, difícil, injusta, assustadora, desigual. Mas não pode ser e não é. E essa força, essa determinação, essa vontade inesgotável de lutar pelos seus direitos e pela sua felicidade existem eternamente em você, e um dia, nem que seja o último, elas te salvam. Regras injustas existem para serem melhoradas. Pensando no bem de todos.
A porta que abriu o século XXI parece ter mexido bastante na poeira e nos fantasmas do passado. Precisamos ajudar com ações a pousar de novo essas poeiras maldosas e destruidoras em sociedade, em vez de ficarmos anestesiados em discursos nas redes sociais. O amor e a bondade podem fazer isso. Agindo todos os dias. Não tem outro jeito.
Se fala muitas vezes que o amor tudo pode. Realmente o amor tudo pode. Primeiro o seu amor próprio que apesar de te tentarem destruir de todas as formas possíveis se deve manter intacto. Feia, bruta, gorda, pobre, negra, diferente, estrangeira, burra, louca, etc. Agressões, proibições, humilhações, traições, etc. É hora da sociedade aprender que a mulher não é inferior nem superior, é diferente. Como somos diferentes todos, mas ninguém é superior. Ninguém. Depois o amor pelos outros, pelos outros que te tratam bem, que te respeitam. Eles são a luz da nossa vida. E, finalmente o amor pelos que te fizeram e fazem mal. Esses também precisam de amor, porque não sabem o que fazem e pagarão caro todo o sofrimento que causaram e causam. Precisam de compaixão.
Como eu gostava de falar com Alice Walker sobre os dias de hoje. Ela deve ter muito a dizer.
Uma produção incrível pela "Estamos Aqui Produções Artísticas" e direção mais uma vez impressionante de Tadeu Aguiar. Atrizes e atores talentosos, no dão cenas emocionantes e autênticos shows de música sempre que cantam. Cenário, figurino, iluminação elaborados de uma forma funcional e extremamente rica para os nossos sentidos. Viajamos entre África e os vários lugares do Sul dos Estados Unidos em cada mudança de luz, em cada rotação de cenário. Fabuloso. Parece tão fácil...
Um raro momento de arte e magia no mundo. Agradeço à vida ter podido viver este momento. Agradeço ao site Dois Terços, particularmente a Genilson Coutinho, por ter tido a amabilidade de conceder 2 ingressos cortesia para o Bug Latino. Adorava que todas a mulheres do mundo vissem o espetáculo. Tantas que precisavam deste estímulo para não desistirem, mesmo nas suas difíceis vidas.
Corra para comprar ingresso, se prepare para sonhar, para chorar, para rir. Para receber boas energias no caminho difícil que é viver sendo um ser humano feminino.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o Musical
Dois Terços