Que filme... Uma sensação de viver, de estar dentro da história. Primeiro que a nossa sociedade brasileira, de uma maneira quase morna no começo, se vê diante de uma pessoa comum, como uma de nós, diante da contrariedade de enfrentar uma parte que se vê “aristocrática” e que resolve “requerer” – claro que depois de anos de abandono – a ideia de que uma casa, aquela e nenhuma outra, deve ter o destino que ela, a aristocracia, crê ser o seu melhor futuro, a sua vocação social. A aristocracia, embora achasse isso, nunca a comprou, já que estava à venda. Então até que uma pessoa como nós a comprasse, era apenas uma casa abandonada. Mas com essa tal “vocação oculta, subentendida”, talvez.
Aquilo que começa como “uma idosa chata, que não percebe seu lugar”, vira aquilo que vemos no nosso dia a dia, no Brasil: pessoas que confundem justiça, com privilégio, que acreditam que conseguiram “oportunidades” quando na verdade estão corrompendo todo um sistema de valores que precisa ser assim pra que as pessoas tenham segurança de lutar pelo que querem e não que se escondam atrás de “papai e mamãe”, que arrumam estágios, bolsas de estudo, empregos – tudo de favor. E parece ver aquilo como o normal, o da vida – mas não.
Um enredo incrível, construído de maneira melhor ainda, com atores maravilhosos, em interpretações minuciosas e sutis da construção do nosso caráter individual e coletivo. Temos essa alguma coisa que precisa ser reconhecida para ser trabalhada, que aqui na Bahia pode ser referida como “não é comigo, não” e no Rio pode ser reconhecida como “não tenho nada com isso”. Uma espécie de egoísmo onde a gente deixa a injustiça acontecer na sua frente porque não está acontecendo com a gente. No filme você tem essa recriação de vida e sente uma vergonha, um mal-estar...
Pessoas ricas e mancomunadas umas com as outras para invisibilizar, neutralizar e inventar uma justificativa paralela onde o crime ganha um contorno de legalidade – exatamente como acontece por aqui centenas de vezes – e nós permitimos porque afinal, não é com a gente...
Cenários perfeitos e mais perfeitos ainda os silêncios – magníficos. Olhares profundos, perguntas curtas que nos constrangem, diante de tudo o que aprendemos com nossos pais. E a solução infantil que, embora inesperada, tenta se reencontrar com a justiça. Ênfase no trabalho de Honor Kneafsey, que tem a força de um talento incrível. Ênfase nos silêncios de Bill Nighy. Ênfase na simplicidade e organicidade de Emily Mortimer. Diálogos muito bem construídos, pausas ainda melhores e uma conclusão que nos coloca diante do espelho: o que esperamos conquistar com essa forma egoísta de agir? Alguém “não nascido nas melhores castas” tem mesmo a ilusão de que desprezar o lugar e as pessoas ao seu redor lhe dará privilégios diante “dos tais aristocratas”? Quantos “sobrenomes impuros e anônimos” ocupam grandes cargos? Quantos filhos se candidatam e se elegem, usando o peso do sobrenome e a influência política dos pais?
Embaraçoso, mas necessário. Ver o filme, se colocar diante dessa tendência perniciosa de abandonar o certo para “se dar bem”, olhar com firmeza para o nosso EU mais interesseiro e egoísta. Ver o filme é isso.
Imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme muito interessante pelo tema central, livros, mas também pela complexidade de temas pouco abordados na sociedade. Diria que para quem se interessa pelas questões humanas, sociais, psicológicas, é obrigatório!
Excelentes e talentosos atores. Mudanças rítmicas na narrativa, muito particulares, que fazem lembrar o grande e saudoso realizador português, Manoel de Oliveira. A natureza e o mundo, claras e complexas personagens do filme. Alguns desses momentos com a natureza são divinos.
Uma livraria. Livros. Essas grandes riquezas que as novas gerações parecem recusar ou ainda não entendem a sua importância. O filme é belo na forma como ama os livros, como os destaca, como lhes devolve o seu valor. Seres inertes fechados que, quando abertos, abrem a vida e a alma.
Tenho sempre muita dificuldade em aceitar que os sonhos das pessoas e a sua luta por eles possam ser problemas na vida dos outros. Não afetam a sua vida ou quando afetam melhoram e muito a vida dessas pessoas. Preferem impedir.
Mudar, perder o poder, perder o domínio, parece ser algo inaceitável. Nesses momentos percebemos que alguns seres humanos escolheram caminhos terríveis para que outros seres humanos não possam ter, ser, viver. Você enfrenta, você resiste, mas sairá sempre lesado, magoado, triturado, apenas porque alguns não querem. Simplesmente. Vemos isso por todo o lado e este filme nos mostra com extrema doçura, coragem, dignidade e nobreza, como por vezes na vida apenas queremos sobreviver, seguir nossos simples sonhos, fazer bem às pessoas, mas sem perceber, “calcamos um ninho de vespas” e a nossa vida, que já era difícil, piora bastante. Mas como o filme refere, a coragem e acreditar no bem que fazemos será sempre a salvação. E as pessoas boas nem sempre têm boa imagem para os que querem manter tudo controlado e para quem não saboreia a vida – apenas avalia, critica, destrói. Finalmente, que os bons são poucos, mas quando o são, são muito bons.
Um filme de 2017, mas sempre atual e aparentemente inofensivo, mas brutal. Não perca.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Inglaterra 1959. Em uma pequena cidade de East Anglian, Florence Green decide, contra uma oposição local, abrir uma livraria.
Diretora: Isabel Coixet
Elenco: Emily Mortimer; Bill Nighy; Hunter Tremayne
Trailer e informações:
https://www.imdb.com/title/tt3127022/