Um filme onde a diretora tem o trabalho de puxar a nossa atenção para o plano dos olhares, partindo do crescimento da intimidade e do sentimento para nos sugar para planos cada vez mais próximos, até conseguir toda a nossa atenção.
Sendo super sensual e tentando respeitar tudo o que era imaterialmente proibido e obrigatório, o filme revela o pensamento feminino pelo seu nível de delicadeza, mas com intensa sensualidade.
Há o amor, o amor é homossexual, envolve duas mulheres lindíssimas, despidas de recursos de maquiagem, figurino e material cênico porque o foco não é a magnitude da vida dos nobres do século XVIII, mas que as pessoas se apaixonam desde sempre e seu coração vai pular independente do gênero. Só de apresentar a questão dessa forma o filme já merece todo o mérito, num momento onde é uma maravilha termos e reconhecermos em nós a capacidade de amar. Num momento social onde casamento significava que a mulher seria “entregue” a um desconhecido através do que ele via em um quadro, a explosão silenciosa dos olhos das duas, que se buscavam, provocavam e fulminavam, explica por qual motivo a gente se sente prisioneira de um tempo onde a sociedade era ainda mais limitante.
Há um aborto que é visto, mostrado e assistido por todos e isso também aponta para o fato de que as mulheres, se sentem que o precisam fazer, o fazem e que é exatamente por isso que o Estado precisa entender que seu papel não é opinar, ser contra ou favor, mas dar cuidado médico. É uma decisão difícil, que pode acabar em problemas muito maiores, como suicídio – que por sinal não para de aumentar, graças ao verniz da hipocrisia da sociedade – a nossa hipocrisia. Nenhuma mulher opta pelo aborto porque está entediada, creiam – da mesma forma que nenhum casal se divorcia por estar entediado – e na época da votação da lei do divórcio no Brasil, em nome da “moral e bons costumes”, ouvia-se esse argumento.
O filme caminha entre temas menos difíceis atualmente, mas ainda muito difíceis – e transita com extremo bom gosto, delicadeza, sensualidade, lentidão e nossos pequenos e absurdamente deliciosos ruídos.
Coloque seu preconceito pendurado dentro do armário porque ele não te fará falta nenhuma no cinema. O filme é excepcional.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
O maior carnaval do mundo está quase a “chegar” de novo a Salvador. A cidade está afogada em obras, na montagem de camarotes, em ruas fechadas, num trânsito caótico. E com início de aulas. Conseguimos finalmente ver o filme na terceira ou quarta tentativa. Ou o trânsito nos atrasava ou as ruas fechadas para obras não deixavam alternativas. Nossa! Sabemos que as obras são necessárias, mas todas ao mesmo tempo? Misturadas com a preparação da cidade para o Carnaval? É uma estratégia para as pessoas ficarem inquietas, desorganizadas e sem conseguirem cumprir seus compromissos profissionais? Para andarem mal humoradas e desabafando a sua desilusão pelo descuido dos responsáveis? “Tiro no pé” num momento muito sensível.
Para quem ama pintura é um filme obrigatório. As imagens em que vemos os desenhos ou pinturas acontecendo, são únicas e sensacionais. Acho que nenhum filme tinha sido tão feliz em mostrar os momento de criação na tela ou na folha de papel.
A capacidade de olhar, de memorizar e de reproduzir imagens, sentimentos, no desenho e na pintura é um talento, um dom. Eles dizem que é apenas prática, mas quem conhece pessoas com esse dom sabe que tem mais alguma coisa. Tem uma forma de olhar a vida, uma atenção maior do que o normal ao mundo, às pessoas e aos acontecimentos. Aos detalhes. Como se todos olhássemos com uma velocidade muito acelerada e os “pintores” olhassem o mundo na metade dessa velocidade, totalmente focados e bebendo todos os detalhes e sensações. Nós vemos metade do que eles veem. São gênios.
Um filme feito por mulheres, sobre o universo feminino e com tempos e ritmos pouco comuns hoje em dia. O mundo anda cada vez mais rápido. Ser capaz de fazer um filme “sem essa” velocidade, é impressionante. Lento, pausado, com planos demorados, aumentando dessa forma a intensidade dos momentos. Planos que aproveitam a beleza das duas atrizes protagonistas. Ambas muito expressivas, muito bonitas e com imenso talento.
Uma mulher faz o roteiro e dirige, outra mulher filma, 4 atrizes sustentam o filme. Mais feminino é difícil. O filme respira num universo de emoções, de olhares, de palavras, de silêncios.
Aborda o aborto de uma forma sutil, aborda a amizade e o cuidado, a paixão, o amor, a gratidão, a saudade, as normas, as decisões difíceis, as despedidas, os impossíveis da vida.
O filme tem algumas cenas fabulosas. A do coro de mulheres junto da fogueira é uma delas. Outra sem dúvida, são as cenas em que os olhares de ambas falam ruidosamente no silêncio e vão dando caminho ao desenrolar das emoções. O mito de Orfeu vai dando o mote, de que você já sabe que a sociedade não aceita o que você está desejando ou amando. E mesmo assim você não consegue impedir. Porque não se impede os sentimentos, os desejos, os sonhos, o amor. Principalmente o amor.
Vejo neste filme também um aviso a todos, em relação às nossas vidas. Para aproveitarmos intensamente as pessoas que amamos enquanto as temos por cá, enquanto vivemos perto delas ou enquanto temos acesso a elas. Nada é para sempre e precisamos apreciar totalmente os momentos. Porque nenhum momento se repete. Um filme que terá muitas mais interpretações. Veja o filme e tenha a sua.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8613070/
Circuito de Cinema Saladearte