Quando, no Brasil, eu vejo as pessoas dizendo que bandido bom é bandido morto, tenho calafrios. Calafrios porque, em primeiro lugar, se parte do pressuposto de que o sistema de justiça funciona e que só os bandidos muito maus estão presos. Para estes iludidos, eu pergunto frontalmente: só os bandidos são presos, no Brasil? Não há nenhuma discriminação no sistema de justiça, de tal modo favorecer aos ricos, com bons advogados para usarem e abusarem dos buracos que o sistema tem?
Quando você entra no cinema para ver um filme que se chama LUTA POR JUSTIÇA, espera ver uma ficção ou já entra com medo de ver no espelho bizarro do preconceito, pela lente da estupidez, váaaaaarias pessoas que fazem parte do dia? Dos programas policiais que fazem a apologia ao encarceramento, até o ministro da justiça, que finge que não entende o que é rachadinha, estamos cercados de pessoas que falam, falam, falam. Mas não contribuem nem com a mudança do sistema, nem com a aplicação real da justiça, que teria que “incluir a inclusão” social.
Por isso, porque é sempre “mais do mesmo para os mesmos”, o filme dói nos ossos. Algum preto passa uma cantada em uma branca e acaba preso pelo assassinato de outra mulher só porque ele é preto e ela branca. Alguém já foi a algum presidio na vida? Alguém já entrou lá? Alguém já viu o nível de indignidade que é ser preso, no Brasil? Você é daqueles que gritam que preso tem que sofrer? E você tem mesmo certeza de que os presídios do Brasil prendem com justiça? Que as pessoas têm mesmo direito de se defenderem? Porque, como jornalista, com um papo no WhatsApp, levantei a história de vários injustiçados. Nem me deu trabalho. Foi fácil. Testemunhos falsos, alguma antipatia e pronto – com a cor certa e o bolso vazio, você pode ser preso e fazer sua vida mudar em um segundo.
O filme faz com que a gente se sinta assim – envergonhada – o tempo inteiro. Tic tac e passam os anos. Tic tac no Brasil os presos são abandonados nos presídios, com processos que não andam sem ajuda e uma burocracia que é areia movediça de caráter e convite à corrupção, dinheirinho por fora, “comunicação”. Ali estão as nossas vergonhas. Não, os presos não são as nossas vergonhas – nós somos a nossa vergonha. Porque partilhamos da ideia de que há diferenças de classe entre nós, os livres e os privados de liberdade e que todos os presos merecem estar presos.
Passo a passo o filme desfaz o pré-conceito de que eles são maus e nós somos bons – e isso é necessário para vermos que todos precisamos cuidar de todos, sem arminha, sem dedinho no gatilho hipotético, sem desaforo, sem fofoquinha ou maledicência de rede social. Num País onde é importante ter o status certo, a roupa, o carro, o celular, claro que isso passa despercebido. Mas seu caráter existe mesmo assim e ver um filme que coloca o dedo na sua cara é libertador. Porque ter caráter e exerce-lo é libertador. E exercer seu caráter não é apontar o dedo na cara dos outros – mil vezes, vezes mil, costuma ser olhar para seu dedo enquanto ele se aponta na sua cara e te pede mais participação, mais reconhecimento e mais civilidade para reconhecer os erros – de todos – a começar dos seus.
Filme imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Uma injustiça sobre uma pessoa, atinge-a no peito e atinge a todos os que a amam e respeitam. Atinge os que viveram, vivem e pensam como ela. Mesmo que se consiga provar que foi um erro, mesmo que a sociedade aceite a justificação, nunca mais a vida será igual. Nem você.
A inveja, a ambição cega, o egoísmo, estimulam nas pessoas ações questionáveis, lamentáveis e perigosas. Se estas pessoas têm poder e se associam a pessoas iguais, nascem organizações e sociedades que destroem os mais frágeis e indefesos de todas as formas possíveis. A história está repleta destas situações infelizes e tremendamente injustas.
Somos um triste mistério eterno. Teoricamente educados para dizermos a verdade, para adquirirmos os verdadeiros valores morais, para sermos nobres, vivermos e promovermos a justiça, a igualdade, a fraternidade. Na vida real a verdade não interessa. Nem a justiça. Nem a honestidade. Criamos sistemas para nos protegerem, mas esses sistemas engolem e atraiçoam os mais frágeis. Precisamente os que deviam ser protegidos.
Pessoas que precisam de anos para provar que têm razão quando todos vêm, todos sabem mas todos se omitem. Muitas morrem sendo consideradas criminosas ou culpadas do que nunca fizeram.
Veja este filme. Veja como ainda hoje alguns têm e outros não. E parece tudo estar a piorar. Você se salva apenas porque VOCÊ faz parte, tem a cor adequada, pertence à família adequada, vive no país adequado, tem o trabalho adequado, no mundo adequado, diz e faz o adequado, blá, blá, blá. Veja o que deixamos acontecer quando não ajudamos as pessoas que precisam, quando aceitamos que as coisas erradas permaneçam. Quando não queremos saber. Não podemos mais viver assim. Não é justo, não é certo e precisamos contribuir.
O filme é uma bomba. Fala de injustiças, de racismo e já seria pesado e muito importante. Mas não fala só disso. Fala que nunca devemos perder a esperança e devemos insistir eternamente na verdade, na justiça, no que acreditamos. Mesmo se ninguém acredita em nós, mesmo se zombam / riem de nós. Nós ouvimos os risos, as gargalhadas de escárnio, mas devemos seguir, quando estamos certos. Nos fecham portas, omitem oportunidades, tiram direitos, oferecem trabalho mal pago ou “voluntário”, manipulam informações nas nossas costas, manipulam a nossa reputação, te intimidam, te tornam invisível, redefinem regras, minimizam tuas capacidades, etc, etc, etc. E você segue, ouviu? Você cai e você levanta, ok? Você chora, desanima...e depois segue de novo. Ninguém pára você porque você defende a verdade, a justiça, a honestidade e o bem de todos. Sempre existe um caminho. Sempre existe um outro caminho. Sempre.
Uma injustiça deixa muito lastro. Haverá sempre um dia onde uma das pessoas que de alguma forma sofreu com essa injustiça se tornará numa pessoa ou instituição que lutará pelos outros. O Bug Latino tenta ajudar todos os dias. Conte com o Bug para escrever, tirar fotos, filmar, declarar algo que precisa ser melhorado, corrigido, apoiado. Para ajudar, para melhorar, para apoiar. Sempre estaremos aqui.
O filme me lembrou do Bug também porque ele parece invisível, mas não é. Nunca foi e cada vez é menos invisível. Apenas porque o Bug faz coisas boas a pensar no bem das pessoas. Existimos com consistência, honestidade, respeito, coragem e enfrentando todas as adversidades. Quando levamos um abanão mais forte, lembramos de duas meninas muito especiais para voltar a caminhar: uma que veio de um lugar pequeno no mundo e, sem “ajudas”, apenas com trabalho, talento, amor e amizade, tocou o teto do mundo; a outra, sofreu injustiças insanas e nunca aprendeu a palavra desistir. Nelas estão nossos olhos e corações, quando tudo parece falhar.
A escola americana de cinema é mesmo um mundo à parte. Excelentes atores. Excelentes. Corpos cuidados sem serem artificiais. Algo que o cinema, o teatro e a televisão brasileiras e os seus preparadores corporais e “PT - Personal Trainers” (treinadores pessoais) precisam repensar urgentemente. Expressões faciais intocáveis e que nem sempre precisam estar atreladas a diálogos. O filme tem momentos em que você se desmancha emocionalmente pelos planos de filmagem escolhidos, expressões faciais e silêncios. Não perca. Um grande filme.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt4916630/
Circuito de Cinema SALADEARTE