Existem duas formas de se ser estrangeiro num país e uma pode criar ilusões sobre a outra. Naquela mais usada, os estrangeiros vão conhecer outros lugares através de férias, passeios e excursões, tendo acesso ao mundo “in” e “out” daquele lugar – o que inclui restaurantes caseiros, pops, caros, baratos – fartos ou não – até drogas, álcool e prostituição – tudo para que o “cliente feliz deixe mais dólares” nas mãos dos comerciantes. Mas quando eles decidem vir de outras maneiras mais permanentes, isso coloca o País, sua organização social, receptividade real, reações, preconceitos, medos e discriminações bem mais visíveis.
Esse filme nos deixou muito expostas aqui em casa porque vivemos o problema todos os dias. Lá no filme, um médico que não consegue espaço cultural, social e profissional, sofre, tenta, se expõe e à sua família a humilhações, em busca de aceitação. Muitas pessoas vão dizer que é porque ele é africano e o país discriminador é a França, na rica Europa. Mas na vida real, eu convivo com uma pessoa europeia, de formação acadêmica top e que, verdadeiramente, precisa inexistir no País para, propositalmente ser "invisibilizada". O problema então não é necessariamente a “mão em que vai a vida”, como muita gente pensa: quem vem da África para a Europa sofre - mas há o fato real de que a existência de pessoas que sonham e queiram ser livres para transitar incomoda. É isso. O resto é discurso.
No banco da escola, quando você está lá, mas vai embora depois de uns anos, vale um tipo de convivência um pouco mais inclusiva. Você ficar em definitivo, o resto da vida, outra. Totalmente diferente.
O filme mostra de uma maneira leve, um egoísmo pesado. Uma xenofobia universal também pesada e, principalmente, uma estupidez mais pesada ainda porque quando você tenta apartar pessoas, perde conhecimento, trocas, intercâmbios, cultura, costumes. E a palavrinha de ouro é mesmo perda. Você acha que ganha com a sua indiferença, com o seu “verniz de importância”, mas na verdade, perde muito.
No filme, precisou um parto de emergência pra que os mundos convergissem; na vida real, nem sempre há partos. Portanto, há uma dor que perpassa e que é permanente nele, como na vida.
Quem pensa que o Brasil está sempre de portas abertas pra todos, deveria ver o filme e pensar um pouco mais. Porque, se pensarmos bem, nas nossas conversas cotidianas, o português é tapado, o francês é porco, o espanhol é grosso, o judeu é “canguinha” ... e a lista é sempre cheia de “adjetivos” desse tipo.
Há alguma coisa errada quando - lá no fundo - somos incapazes de aceitar que a Europa tem melhores escolas quando recebemos pessoas de lá e não apenas quando vamos estudar lá - pensem nisso.
No filme tudo se ajeita. Na vida real... depende de cada um de nós, o tempo todo.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Uma história real. Um estrangeiro, no final do seu curso de medicina, recusa um trabalho de sonho em que teria de colaborar com a corrupção e aceita um trabalho honrado numa zona rural. Um gesto sensacional, nobre, altruísta. Ele quer contribuir. Ele pode. Ele é bom médico e boa pessoa. Mas sendo um estrangeiro negro numa terra rural francesa, terá muitos problemas para enfrentar. É numa zona rural francesa mas podia ser em qualquer outro país. Seria igual. Imensa estranheza, racismo palpitante, má fé, etc. Um filme que me fez chorar, que me deixou muito triste por ver como cada povo tem dificuldade em aceitar o diferente, o outro. Principalmente o diferente que escolheu estar ali por opção. Se fosse alguém que as pessoas decidiram aceitar, seria bem recebido, nas suas regras claro. Assim como, se fosse rico, famoso e lhes fosse útil. Se for uma pessoa honesta que decidiu ir para aquele trabalho e para aquele lugar, que tenta fazer o seu caminho e a sua vida, terá de passar por vários testes, impedimentos, dificuldades, exclusões, invisibilidades, recusas. Incrível como vemos isto até no trajeto de Barack Obama até ser presidente. A estranheza, a invisibilidade, a resistência, até que a pessoa finalmente consegue se impor ou consegue fazer-se entender e todos percebem que a pessoa veio para contribuir, não veio para tirar nada de ninguém. Felizes os que conseguem, ficam e aguentam, porque muitos morrem antes de serem aceites, ou mudam de lugar porque não vivem para serem excluídos. Quem tem o direito de excluir alguém? Porquê? Muito tocante. Importante ser visto e ser conversado. Precisamos ensinar as crianças a fazer diferente do que os adultos fazem. Estas situações são demasiado injustas e desnecessárias. Todos perdem e nem pensam nisso. Terrível como as pessoas, no século XXI ainda acham que são donas dos territórios, dos lugares, do destino dos outros. Mesquinhas fazem todos perder, incluindo elas. Um médico que eles recusam, piorando a sua saúde, para não terem de o aceitar. Triste.
Excelentes atores. Marc Zinga, o médico, é uma doçura de pessoa e um grande ator. Intensidade em cenas simples, excelentes expressões faciais, olhares. Se quer contribuir para um mundo melhor, veja o filme e tente fazer uma parte. Estas coisas não podem continuar a acontecer.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: A história de Seyolo Zantoko, que como médico recém-formado de ascendência africana na França, lutou com sua família para se integrar em uma pequena vila rural, e acabou sendo considerado um dos médicos mais respeitados da região.
Diretor: Julien Rambaldi
Elenco: Marc Zinga, Aïssa Maïga, Bayron Lebli.
Trailer e informações:
https://www.imdb.com/title/tt5555502/
https://www.netflix.com/br/title/80123740