Um filme sobretudo realista, no sentido de apontar nossas inúmeras escapadelas do real. O Brasil é um País com enormes problemas de violência urbana. É fato. Na França, a qualidade de vida é MUITO, MUITO, MUITO melhor do que aqui. É fato. Mas o terrorismo pega todos os séculos de evolução, boa política e boa administração que fizeram da França, a França e joga tudo no mesmo lugar – o do medo, o do luto, o da perda.
Basta você estar num parque, andando de bicicleta e se sentindo livre pra vir um radical e dar tiros em todas as direções. Aqui já tínhamos os radicais – era só mais trabalhoso se armar e dar tiros em todas as direções. Agora...
Tenho medo dos radicais. Não gosto de conviver com eles. Estão sempre com a ideia absurda do tudo ou nada, quando viver em sociedade significa negociar, ceder um pouco, convencer o outro a ceder um pouco e... conviver.
No filme, fica muito claro que é difícil conviver ou mais difícil ainda reconstruir a convivência em outros moldes familiares. E também fica muito claro que a felicidade que todos falam e fotografam na internet ficaria meio estranha num card – “felicidade é você perceber o vento no cabelo, andando de bicicleta” – num momento onde tem uma multidão invejando o cara que conseguiu uma selfie com um crocodilo, cobra ou tubarão. “O super iludido do dia”!
O que é mais real? Comer e curtir a companhia, o momento, o papo ou fotografar o prato de comida? O Instagram é mais real que a vida? A sua vida?
Quando sua mãe vai fazer um pic nic e morre, quando você sai pra trabalhar e uma bala perdida te acha, sua vida muda – tic – você era feliz, tinha equilíbrio – tac – não tem mais, você está morto ou ferido ou de luto. Tic, tac, tic, tac...
No filme, a menina não falava porque lhe doía. E explodia. O tio dela não sabia como falar do assunto e explodia. De modos diferentes, como é na vida. Aqui querem nos empurrar “a maravilha de dar tiros pra todos os lados!” – Dãã! Lá, a maravilha de Alá te receber porque “você foi premiado e virou mártir!” – Dãã!
Felicidade não é o carnê o baú. Não vem em caminhão do Faustão. Mas vem nas pequenas coisas das quais sentimos falta todos os dias. Nas pequenas enormes qualidades que a vida pode ter se nós pararmos de brigar por grandes brigas e começarmos a brigar para vivermos e convivermos melhor.
Sem dúvida é outro filme que as escolas deveriam passar pra depois discutir, pensar, debater. Ou seja: menos shopping para anestesiar, viciar, consumir, gastar, ter – e mais cortar roseiras e fazer compota em casa, só pra ficar ali, curtindo companhia e café.
Quem não for ver, vai perder, com certeza!
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
Ai gente... Alguns filmes deixam a pessoa sem palavras, sem vontade de mexer naquela dor que foi exposta no filme. Deixar quieta, adormecida e “esquecida”. Fazer de conta enquanto nos é possível. Mas a arte também existe para nos movimentar em direção ao que adiamos enfrentar. Nós enquanto plateia. E este filme nos faz isso de uma forma muito doce e humana.
Um filme que dá vontade de viver em Paris. Mostra como a vida pode ser bela, fácil e simples. Respeitar a família e conviver e aproveitar a sua existência, fazer e manter amigos, conviver com as pessoas que se gosta fazendo coisas diferentes e saborosas como fazer piqueniques em jardins e parques limpos e lindos, ou simplesmente sentar junto e falar. Estar. Caminhar e andar de bicicleta a qualquer hora do dia e da noite. Partilhar e colaborar na resolução de problemas de forma carinhosa e respeitadora. Viver em sociedade e em família de forma equilibrada, colaboradora e emocionalmente evolvente. Sabemos que esta forma de vida pode ser vivida em qualquer lugar do mundo, não precisa ser em Paris. Mas as coisas simples deixaram de ser consideradas importantes e, na verdade, elas são essenciais. Passou a ser mais importante ter um carro grande e imponente e depois marcar horas na academia. Ter empregada para limpar a casa, outra para cozinhar e não saber a importância de cuidar dos seus próprios alimentos e de limpar a sua própria casa. Ter o último nível de yoga, pilates, crossfit e a moda que vier a seguir e não entender nem ouvir o seu corpo. Olhem os corpos dos atores neste filme. Corpos de pessoas que tentam levar vidas saudáveis, contemplativas e serenas em sociedade.
E, de repente a vida muda. Num segundo. E, se no Brasil a vida pode mudar num segundo por ser um país inseguro por “natureza”, o mundo virou um lugar inseguro subitamente. E lidar com tudo isso em lugares e mundos que eram seguros, é muito difícil. Explicar às crianças, entender, seguir em frente. Aceitar o medo e ir, mesmo com medo (existe uma frase conhecida mais ou menos assim). Tentar remediar, criar novos caminhos, aceitar que o passado é lindo mas é passado. E fazer o melhor possível com o que se tem e com o que se consegue.
Este filme nos faz recordar de muitos momentos do passado em que fomos muito felizes. No presente e futuro, somos e seremos felizes fazendo outras coisas e seremos mais felizes quanto melhor aceitarmos isso. A liberdade e segurança de outros tempos desapareceu. Em alguns lugares desapareceu aos poucos, mas noutros desapareceu de repente.
Durante mais de 40 anos, sendo mulher e vivendo em Portugal, pude viver em lugares e viver momentos onde podia caminhar, correr ou andar de bicicleta a qualquer hora do dia ou noite. Só ou acompanhada. Na cidade, estrada ou no meio de uma montanha ou floresta. Fazer piqueniques em qualquer lugar, em família ou com amigos, ou sozinha. Ir e voltar sozinha de carro ou a pé para me encontrar com os amigos a qualquer hora da noite, na cidade ou na aldeia. Quando era adolescente lembro de adorar andar de bicicleta na hora que as famílias se juntavam para assistir as telenovelas brasileiras. Era um momento em que as estradas, as florestas, o ar e o silêncio eram meus e sentia uma liberdade espaçosa misturada com uma conexão com a natureza e o universo. Me lembro de uma noite, em Toronto, depois de terminada a competição e das atletas com quem eu trabalhava terem ido num voo mais cedo, ir sozinha a pé a um bar de Jazz. Lembro de passear por todos os cantos das ilhas dos Açores com meus pais e de fazermos piqueniques em qualquer lugar. Nos lugares mais isolados e mais incríveis. De jantarmos e depois darmos grandes passeios pela noite sem pensar em mais nada do que saborear o momento. De, no meio da cidade de Pequim, uma das atletas aceitar ir ver uns quadros com uns caras que apareceram e eu e a outra atleta, fomos, para ela não ir sozinha, cheias de medo, e afinal, era mesmo uma sala onde tinha quadros à venda. De noite fazer fogueiras na praia, nas férias, com meus irmãos e amigos, e ficarmos a noite inteira conversando e cantando. Uma das minhas irmãs teve uma amiga que era uma violinista talentosíssima e que uma vez aceitou tocar para todos os amigos, na praia à noite. Nunca mais vou esquecer. Tinha 11 anos. Deitada na areia, de noite, olhando as estrelas, junto com meus irmãos e amigos ouvindo violino, ao vivo. Privilégios e uma noção de liberdade que já não existem, que já não são possíveis.
Novamente o ator Vicent Lacoste sensacional. O cinema francês em todo o seu esplendor de charme e humanidade. Um encanto.
Ana Santos, professora, jornalista
Site com informações do filme
https://www.imdb.com/title/tt7491144/
Site Saladearte