A primeira grata surpresa foi que o filme tem uma narrativa que lembra demais os contextos de Nelson Rodrigues - na minha opinião o maior dramaturgo da nossa história, em todos os tempos. A câmera invasiva também é espetacular – você fica ali como um espião de cena, vendo da posição privilegiada dos planos próximos – colados – todas as intimidades, os poros, as piscadas. Não reconheci o Rio muitas vezes, outras me vi andando por ali, vendo a semelhança entre as ruas do Estácio e Salvador, constatando a influência portuguesa na nossa vida.
Aí começam algumas questões que têm a ver com a história. Anos 50, metade do século passado, ok? Muita licença poética se teve que requerer para um pai português dos anos 50, que jamais receberia a filha que deu “um mau passo” imitando movimentos de um ato sexual. Botar pra fora de casa é irritante e triste, mas é isso mesmo. A mente pobre, a moral pobre, os bons costumes pobres de sempre. Mas fingir que está transando ao receber a filha que acabou de chegar da Grécia com o barrigão de grávida, não rolou. O pai português padeiro que no casamento da outra filha dança o “vira” também não rolou – esse Portugal é o que Roberto Leal trouxe e foi deixando aqui. Portugal é muito mais rico culturalmente do que pulinhos pra um lado e para outro, acreditem.
A história, a forma como as irmãs se relacionam, a intimidade oculta entre elas, as interpretações – principalmente de Guida – tudo muito bom, embora a questão da diferença de sotaque entre as irmãs me tenha incomodado. Uma irmã paulista e outra carioca foram criadas juntas por pais portugueses, no Rio de Janeiro. Ok. O sotaque paulista veio de onde? Esses detalhes me piram.
Tendo essa pegada de Nelson Rodrigues, a interpretação é imprescindível porque é estruturante para tudo o que acontece e é invasivo. É importante dizer isso porque achei Duvivier fora dessa estrutura. Pra falar a verdade, os homens, de modo geral, eram over. Não machistas, não sexistas. Apenas overmesmo.
E no final, as cenas de Fernanda. Meu Deus. Ela amarra tudo o que por acaso foi deixado em aberto – o marido herdou as cartas (as que ela recebeu da irmã), do sogro e não as repassou? Chegou a achar as cartas? Nunca as descobriu no cofre? Nunca abriu o cofre? Nada disso importa quando Fernanda assume o leme e conduz a nossa imaginação. Uma grande atriz pode ser uma santa ou bruxa, pode ser queimada com livros ou idolatrada porque ela estimula nossa imaginação. Que trabalho. Que trabalho!
No final do filme fica o gosto amargo que persiste até hoje no nosso provincianismo atrasado, nesse pseudo eterno julgamento de moral e bons costumes, “pelo sinal da santa cruz”, amém, por valorizar o que os outros vão pensar da filha, da vizinha, da neta, da sobrinha, por fofocar sobre a aplicação desses costumes idiotas e ser imoral ao falar de uma moralidade falsa e hipócrita. Cá estamos, viva o Brasil, salve, salve.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
A beleza do Rio de Janeiro. O tamanho de uma cidade onde as pessoas podem se perder com facilidade umas das outras. Podem se perder de si.
Um filme que fala de mulheres, de vidas embrulhadas em segredos familiares fraturantes. Nas famílias e no empenho em manter sua dignidade a qualquer custo. Nos sonhos e desejos de cada um e o confronto com o que a realidade permite. Nos preconceitos. No machismo. Nas pessoas que nos salvam. No destino, esse designío aparentemente solto e sem manipulação de outros.
A vida de duas irmãs que se separam mas que também podia ser de duas irmãs que vivem próximas fisicamente mas na distância emocional de vidas separadas por maridos e filhos. Decisões que se tomam em momentos da vida que esmagam sonhos de outras pessoas para sempre. Segredos que perpetuam essas situações. Palavras que nunca se dizem, mentiras que se tornam certezas. A vida sempre avançando e envelhecendo os desejos, nos asfixiando com o agora e a necessidade de sobreviver, de trabalhar para comer e para ter um teto. Vivemos e sofremos tanto, mas tanto, sozinhos no meio de tanta gente.
Fernanda Montenegro, chega ao filme para fazer a diferença. Como sempre. Sensacional. Faz chorar qualquer um. Domina os momentos, as expressões, as palavras e a forma como as fala.
Muito cigarro em cena. Acho que não existe uma cena que não tenha cigarro. Não vejo necessidade desse pormenor para retratar a época. Para as gerações novas pode servir de estímulo e isso é totalmente desaconselhável.
Enquanto portuguesa fiquei um pouco desapontada pela forma como foram retratados os portugueses que viviam no Brasil nos anos 50. Os adultos dessa época eram de uma educação muito rigorosa. Extremamente polidos e educados. Não levantavam a voz, não discutiam com as filhas fazendo movimentos corporais de cenas sexuais, não vestiam roupas típicas do folclore português na sua vida do dia a dia ou em festas. Não eram mal educados, desrespeitadores. Nem todos faziam pão. Particularmente essa geração, era de um rigor nos seus comportamentos sociais inigualável. Impecavelmente vestidos, linguagem rica e elevada, extremamente formais e obedientes socialmente. Julgo que uma pesquisa mais cuidada poderia ter evitado uma imagem tão marcada e penso até que injusta da realidade. Um português não são todos os portugueses. Uma imagem marcadamente preconceituosa dos portugueses que me entristece pessoalmente. Como se fosse um filme que incluísse italianos e tivesse obrigatoriamente pasta, pizza e gritos. Os italianos são muito mais do que isso.
Também registro/registo aqui uma sensação que fica do filme de que discutir é gritar, que exercer a autoridade é gritar, que sentir orgasmo é gritar como se você estivesse sendo torturado. Numa época em que a intimidade era exageradamente silenciosa?
A banda/trilha sonora é bastante pesada e dramática. Aumenta e muito o drama do filme. Quase chega a ser incómoda.
Gostei muito de ver o filme e desejo o melhor no seu percurso. A juventude passa num sopro. A vida passa num sopro. Quem ainda está nesse momento da vida inicial aproveite bem e não deixe que os outros, sejam eles quem forem, determinem o seu futuro. E, mesmo que só em adulto seja possível viver em plenitude, aproveite bem. Tudo é muito rápido. E ninguém é menor, nem inferior. Todos merecemos o melhor. Vá em busca do seu melhor. E veja o filme.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt6390668/
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha
http://www.itaucinemas.com.br/filmes/
Circuito de Cinema Saladearte