O que um filme passado no início do século XX pode ter de semelhante a nós, aqui no século XXI? Quase tudo, acho. Primeiro: a escuridão dos tempos, no filme, é muito próxima da escuridão com que o mundo e, dentro dele, o Brasil, têm apontado como tendências. A luz é pouca e a gente acaba acostumando os olhos à escuridão que reina ali. Acostuma os olhos, mas não ao sentimento. De uma maneira muito crua, somos observadores da injustiça, da indiferença, do preconceito e da perseguição – o que o judeu Freud tem em comum com o menino sem nome de São Paulo que foi chicoteado no mercado? O preconceito. A guerra e a tentativa de transformar todos em seres invisíveis para destruir, humilhar, desdenhar. A personagem do filme foi assassinada, mas antes disso espancada e humilhada. A nossa personagem foi espancada, chicoteada diante dos olhos de todos, graças à internet e depende de nós que ela vire parte de um manifesto à luta pela honra.
Preconceito, ignorância e escuridão existem e existirão. Para eles, nós. A minha dor, hoje é não conseguir ainda distinguir com clareza quem somos nós. No filme, o nós é um adolescente que poderia viver com as dores, amores e espinhas da idade. Mas não. Aqui no Brasil, nossas dores, amores e espinhas fazem parte da mesma discussão: somos divididos entre melhores e piores? Não deveríamos ser um único povo, lutando por uma vida digna de nós? Quem somos?
Um filme profundo, cheio de sonhos, fantasias, desejos não cumpridos. E também honra. Um momento onde me veio claramente a ideia de que o Bug está engajado em fazer parte de um mundo que possa ser visto como melhor, com pessoas que não precisam ser amordaçadas, presas nuas e chicoteadas por um maldito chocolate.
Mundo escuro o nosso também.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Atores excelentes. Fiquei encantada particularmente com Simon Morzé. Novo, bonito, charmoso, encantador e um “baita” ator. Um corpo encantador por ser único e natural. Sem dimensões X ou Y de bíceps ou tríceps. Sempre vou admirar pessoas do mundo midiático/mediático que mantêm suas características próprias corporais, se amando do jeito que são. Um retrato de uma época com uma encantadora Tabacaria que dá vontade de começar a fumar só para a poder visitar.
O filme. Lento ao ponto de nos obrigar a uma “travagem” emocional. Chegamos da vida de correria do século XXI e ao sentarmos na cadeira para assistir a um filme desta qualidade, sentimos o impacto.
Para quem está de alguma forma ligado à psicologia, sente uma grande honra de poder assistir a períodos de vida de Sigmund Freud. Quase como se o pudesse conhecer, estar em sua casa, perceber suas interrogações e o que viveu como judeu na sua época mais inacreditável da história. Poder imaginar sua candura, simpatia, profundidade, como amigo, como cidadão que sai à rua para conviver com as pessoas que gosta de comprar seu jornal ou seu cigarro ou charuto especial. As pequenas coisas, os pequenos luxos, as pequenas ações, as pequenas ajudas, preocupações, constroem grandes amizades e grandes vidas. Transformam a vida das pessoas. Fazer amizade sem olhar a idade, estatuto social, país, parece ser mais valioso nos momentos duros e difíceis da vida. E é tão belo assistir a isso no filme.
A forma como os sonhos são colocados no filme, é sensacional. Sen.sa.cio.nal. A forma como o filme mostra o que temos vontade de fazer e o que conseguimos fazer. Sen.sa.cio.nal.
A forma como o filme deixa a nossa imaginação solta e sofrida pelo que mães solteiras e/ou sozinhas sofreram, para poder sobreviver numa época tão difícil, tão machista, tão injusta, tão horrível. Infelizmente em muitos países, parece que recuamos para esse lugar de novo. O que está a acontecer conosco? Que coisa tão triste, amarga e perturbante.
Um filme inundado de “não dito”. Você quer o melhor para o seu filho e o envia para o melhor lugar que você é capaz, mas não explica isso ao seu filho. Ele vai entender com o tempo. Mas com dor. Era uma época que se dava “meia explicação” ou mesmo nenhuma. Mas agora com tanta tecnologia e informação, se faz o mesmo ou pior. Agora a mentira surgiu como uma estratégia. Como fomos capazes? Como somos capazes? Olhemos com humildade para o que este filme mostra. Para uma lealdade cada vez mais rara e que é tudo na vida. Para o verdadeiro amor que se torna visível em tempos difíceis. Para a coragem da amizade. Viver com os outros, em partilha. Por que afinal o que importa? Ser melhor do que os outros? Tornar a vida uma competição?
Um filme arrebatador.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt7477068/
Circuito Saladearte